O silêncio é um bem raro e, por isso, precioso. É importante preservar as nossas Igrejas e Capelas, fora dos tempos de culto comunitário, como oásis de silêncio no deserto rumoroso das cidades (e até aldeias) em que vivemos e onde falta esta água sem a qual não pode haver vida interior. Numa catequese de 15 de dezembro de 2021 sobre São José, homem do silêncio, referia o Papa Francisco: «É importante pensar no silêncio nesta época na qual ele parece ter tão pouco valor. […] Mas todos sabemos por experiência que não é fácil: o silêncio assusta-nos um pouco, porque nos pede para entrarmos em nós mesmos e encontrarmos a parte mais verdadeira de nós. Muita gente tem receio do silêncio, deve falar, falar, falar ou ouvir rádio, televisão…, mas não pode aceitar o silêncio porque tem medo». Mais recentemente, na alocução ao Angelus de 10 de dezembro de 2023, Francisco convidava: «mesmo que isso signifique ir contra a corrente, valorizemos o silêncio, a sobriedade e a escuta».
Mas em que consiste o «silêncio» preconizado para as nossas Igrejas?
A primeira e originária aceção deste termo é «estado de quem se abstém ou pára de falar» (cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha]). É importante destacar este significado porque o «silêncio» identitário do espaço Igreja não é, primeiramente, uma suposta (e impossível) ausência de sons, mas um necessário, deliberado e corajoso «calar-se». Falamos, obviamente, do tempo fora das celebrações comunitárias (estas são, por essência, o tempo da Palavra de Deus e da palavra a Deus, intercalado ainda por palavras de convite, diálogo, informação e incentivo entre os participantes/orantes; mas também esta palavra não é possível sem o suporte do silêncio que escuta, acolhe, adora).
O primeiro inimigo do silêncio, que devemos combater na Igreja, é a conversa fiada, é o falar negligente, distraído, despropositado, por vezes murmurador e maledicente. Há quem, depois de sete dias seguidos a rezar o terço numa Igreja, já aí se comporte como se estivesse na sala de estar da sua casa, desfazendo-se em cumprimentos com comadres e compadres, dando e pedindo notícias da família e conhecidos, e partilhando as novidades do anedotário local ou dos noticiários da véspera. E levam a mal quando alguém critica que se fale ao telemóvel dentro do espaço sagrado ou convida a calar e a prestar mais atenção ao Dono da Casa ou, pelo menos, a não perturbar quem deseja encontrar-se com Ele e escutar a Palavra que só fala quando outras palavras emudecem. Estes inimigos do silêncio até na fila da comunhão (ou ainda com o SS.mo Sacramento na boca!) se desfazem em mesuras e saudações com as pessoas conhecidas que vão localizando banco a banco.
Silêncio! Silêncio para ouvir o Senhor e, também, silêncio para o louvar! Estamos habituados a rezar o v. 2 do Salmo 65/64 segundo a versão litúrgica oficial: «A Vós, ó Deus, é devido louvor em Sião». É assim que traduz a maioria das Bíblias, seguindo a antiga versão grega dos LXX e a versão siríaca. Entretanto o Texto Massorético (hebr.) e as antigas traduções de Áquila (gr.) e aramaica traduzem: «Para ti, o silêncio é um louvor». S. Jerónimo, na revisão do Saltério segundo a veritas hebraica (que não entrou na Vulgata Clementina), traduziu: «Tibi silens laus Deus in Sion» – «A Ti um silente louvor, ó Deus, em Sião». A tradução que está a ser preparada para a CEP não ignora esta tradução, mas apenas a refere em nota: «Para ti, ó Deus, o silencio é louvor, em Sião». Mais ousada, a tradução oficial italiana, aprovada pela CEI em 2008, traduz sem hesitar: «Per te il silenzio è lode, o Dio, in Sion» – «Para Ti o silêncio é louvor, ó Deus, em Sião». Já Luís Stadelmann, em 1983, propunha: «Se alguém te louva em silêncio, ó Deus de Sião, ou cumpre os votos em tua presença, tu ouves a sua oração» (Os Salmos. Estrutura, conteúdo e Mensagem, Petrópolis, Vozes). Quase nos parece ver aqui uma alusão à prece silenciosa de Ana, futura mãe de Samuel (1Sam 1, 13), injustamente censurada pelo Sacerdote Eli que a julgava ébria. E a sua silente oração foi atendida. Nas notas de comentário da tradução italiana sublinha-se que «o gesto de tapar a boca com a mão para calar equivalia a reconhecer a própria incapacidade e o próprio espanto perante algo de grande e incompreensível (Jb 21, 5; 29, 9; 40, 3-4; Mq 7, 16)».
Hoje perdemos a memória da origem das palavras, mas a «adoração», originária e espontaneamente, consistia em levar a mão à boca (os, oris; «ad orem») num gesto de autoimposição do silêncio, que brota da experiência assombrosa do encontro com o inefável, tremendo e fascinante. Poderíamos, a propósito, recordar a recomendação de Sofonias: «Silêncio, diante do Senhor!» (1, 7). Perante a presença do Senhor no seu templo santo, toda a terra se deve calar (Hab 2, 20). E como poderemos nós fazer das Igrejas palratório!
(Secretariado Diocesano da Liturgia)