O Concílio de Niceia será um acontecimento de que a maioria dos cristãos de hoje nem sequer ouviu falar. Mas proponho às pessoas o esforço de o recordar e de observar como se trata de um elo importante na tradição da nossa fé. Este concílio teve lugar na Primavera e Verão do ano 325, em Niceia (hoje, Isnik), uma cidade de Bitínia. Esses lugares, de grande importância para a história do cristianismo, situam-se na atual Turquia e foram submersos pela cultura islâmica. Em vão buscaremos vestígios cristãos em cidades como Antioquia ou Alexandria. Pois, o Concílio de Niceia foi a primeira reunião de toda o mundo cristão de então, desde a Península Ibérica, à Europa central, à África do Norte, ao Médio Oriente, à Ásia Menor e à Pérsia. A paz com o Império Romano tinha cerca de uma década (314). O próprio imperador Constantino, coberto de ouro e de esplendor, convocou o concílio, pagou as despesas com deslocações e estadias, presidiu às sessões solenes. Dizem, porém, que teve o bom senso de não se meter nas discussões dos delegados. O nome mais importante dos participantes é o de Atanásio de Alexandria. Em Roma, governava o Papa Silvestre I, que não se deslocou a Niceia. Alguns dizem que se terá feito representar por Ósio de Córdoba. Ao celebrar 17 séculos, o que podemos sobre este famoso concílio?
A primeira observação que ocorre é o espanto pela prodigiosa elaboração doutrinal que fé cristã tinha adquirido em pouco tempo de existência. Já tinha havido Orígenes, mas Agostinho ainda não tinha nascido. Não parece haver muitos momentos na história da humanidade em que um progresso tão rápido do pensamento humano tenha tido lugar. Quais foram as aquisições mais importantes que o concílio recebeu, professou e transmitiu à posteridade?
A primeira de todas é a definição da consubstancialidade do Pai e do Filho. Essa estranha palavra “consubstancial”, que dizemos no credo mais comum, é um ponto de chegada e um ponto de partida. Algumas línguas evitam-na e traduzem por “da mesma substância” ou da “da mesma natureza”. O resultado é pouco melhor. O que se trata de afirmar é que Jesus Cristo é tão eterno e tão divino como Deus e existe desde sempre, de forma que Deus não pode ser pensado fora da perspectiva da incarnação. Esta confissão de fé foi formulada em polémica com o tal Ario de Alexandria que, racionalista impenitente, achava que o ser de Deus se pode pensar “antes” da incarnação do Filho e este é “posterior” ao Pai e de dignidade inferior.
O segundo tema que deu muito que pensar aos Padres de Niceia foi a paixão do Filho de Deus. Se Cristo é tão divino e impassível como o Pai, como pode sofrer e morrer? Como pode o Verbo eterno fazer-se “carne”? De novo, se trata do problema de expressar o conteúdo da fé, usando os conceitos da filosofia grega abstrata. Esse foi um drama da fé dos primeiros séculos. Para ser compreensível, teve de se exprimir na linguagem do pensamento comum. Mas para preservar a sua identidade fundada na vida, acção, palavra e identidade irrepetível de Jesus, quer dizer, na sua “carne”, teve de fazer cuidadosas distinções. B. Sesboüé diz, muito acertadamente, que quanto mais a doutrina cristã se exprimir com os conceitos do pensamento grego, mais se afastou do significado original deles.
A fé cristã é originariamente vida, acção, experiência invencível do frente a frente com Deus que dá o ser humano a si mesmo em glória, comunhão, trabalho e serviço. Essa experiência faz-se palavra, cultura, instituição, civilização. Em cada tempo a experiência irrepetível formula-se de um modo novo. Os Padres de Niceia correram o risco se exprimiram a fé com conceitos gregos, evitando cuidadosamente o arianismo, com aquilo que era uma descrição mentirosa da fé. Essa ousadia proporcionou-lhes levar o Evangelho Ao Império Romano que se encaminhava para o seu termo. Muitos dias e séculos cresceram dessa semente, numa história cuja balanço será sempre inacabado. O risco de passar ao “novum” é o caminho inevitável para as Igrejas cristãs em todos os tempos.