Se puderes, muda!
Se puderes, muda. Não te agarres ao que já havia e ao que já tinhas. Olha para cada coisa como se fosse a primeira vez. Se puderes, muda. Corta as raízes velhas que te prendem ao mesmo-de-sempre e volta a plantá-las num pedaço de terra novo e fresco. Se puderes, muda. Respira fundo, fecha os olhos com a força que têm as marés e guarda-te de pensar tempestades ou outro tipo de tormentas. Se puderes, muda. Atravessa a estrada com cuidado. Atravessa a vida dos outros com calma, mas atravessa a vida e os dias como quem (já) não tem nada a perder. Se puderes, muda. Descobre aqueles traços teus de que não te orgulhas assim tanto e vê o que podes aprender deles e com eles. Se puderes, transforma-os em desenho novo. Se puderes, muda. Não te inquietes tanto. Não te deixes perturbar tanto. Não oiças tanto o que os outros têm para dizer. Agarra-te bem a todas as coisas certas, valiosas, pequenas e importantes. Confia mais. Sossega mais. Entrega-te mais. Se puderes, muda. De cenário. De rua. De casa. De vida. De objetivos. De perspetivas. De sonhos. De planos. De calendário. Muda tudo, se achares que deves. Sem olhar muito para trás. A vida não está para quem quer ficar para sempre no mesmo sítio. Há muito mais ali à frente. Há muito mais depois do confinamento. Há muito mais depois de ti. Há muito mais para além de ti. Se puderes, muda. É das mudanças que nascem todos os milagres que não existiriam se tivesse ficado tudo como estava. (© iMissio)
A solidão de estar com quem se ama.

A solidão faz parte de qualquer vida humana. Não importa com quantos amigos e conhecidos nos relacionamos. Seremos sempre sós, porque somos sensíveis e temos consciência. Por mais que acreditemos que há alguém com quem podemos estar em total sintonia, isso é muito pouco provável. É certo que, no fundo de cada um de nós, somos muito mais iguais do que diferentes, mas depois, cobrindo essa migalha de luz, há um conjunto grande de camadas que nos tornam muito desafinados, resultado de diferentes caminhos, memórias, pesadelos e sonhos, crenças, dúvidas, certezas, fé e medos. Somos todos iguais, mas só no mais fundo de cada um. Quando partilhamos o mesmo espaço durante muito tempo com alguém acabamos por dialogar connosco mesmos, encontrando com facilidade o que nos distingue dos outros. Sem que nos julguemos melhores ou piores, apenas autênticos. Daqui podemos lançar-nos aos outros, estabelecendo laços mais puros com os que nos rodeiam, porque não temos ilusões, nem a respeito do que somos, nem do que os outros podem ser. A bondade ergue-se a partir de uma certa solidão. Enraíza-se a uma profundidade maior do que o normal. Mais, é necessário que consigamos encontrar o equilíbrio em nós antes de nos oferecermos para ajudar a equilibrar alguém. Amar é dar-se. Mas só se dá quem se encontra. Quem descobre a riqueza de ser quem é, por mais humilde que possa parecer aos olhos dos outros. Há quem, sem acreditar Nele, encontre Deus. E quem, buscando-O com fé, não sinta senão uma enorme treva, um vazio sem sentido… A existência de cada um de nós é uma longa peregrinação em busca de algo que nos ultrapassa, mas nos envolve. Algo que nos indica caminhos, mas nos deixa livres. Algo que nos cria, mas como criadores de nós mesmos. Será melhor estarmos sós ou assumir compromissos para com falsas comunidades? A solidão é talvez um preço prévio que se deve pagar a fim de mantermos uma perspetiva verdadeira sobre quem podemos e devemos desejar ter próximo. Os tempos de muito tempo convidam-nos a descobrir as camadas que em nós, quais vitrais, nos tingem a migalha de luz que a todos nos dá vida. Brilhando e admirando o brilho dos outros. (José Luís Nunes Martins)
A pergunta decisiva, por Tolentino Mendonça.

O devastador impacto da covid-19 sobre as nossas sociedades tem sido colhido, tanto por peritos como na perceção popular, como uma catástrofe e um trauma. São palavras com um sentido preciso sobre o qual convém refletir. Uma catástrofe ocorre quando a maior parte ou a totalidade de uma comunidade é fortemente condicionada por uma disrupção inesperada: as rotinas ficam inviabilizadas, o conjunto da estrutura social estremece e a comunidade não consegue, com os recursos próprios, fazer frente às gravíssimas necessidades que emergem. Quanto ao trauma, pode ser útil recordar o que dizia Freud: um trauma é uma agressão que, por ser imprevisível, nos encontra sem defesas, e traz por arrasto a implosão violenta da nossa representação ordinária do mundo, confinando-nos a um incapacitante estado de angústia. A frequência com que os termos catástrofe e trauma aparecem citados testemunha como o grau de sofrimento coletivo cresceu. E, infelizmente, continuará a crescer, pois os danos provocados alteram a fisionomia da nossa existência comum. Porém, muitos se começam a interrogar, com razão, sobre como será o pós-covid-19. Precisamos de resiliência para que, uma vez feridos, isso não nos retire completamente a confiança na vida, nem obstaculize para sempre a alegria de que somos herdeiros Nas ciências humanas, há dois axiomas esperançosos para o tempo de reconstrução que se reabrirá. O primeiro é o “axioma de Quarantelli”. Enrico Quarantelli (1924-2017) foi um importante sociólogo norte-americano, que se especializou no estudo de reação aos desastres. As suas conclusões sublinham que as catástrofes geram mais cooperação que conflito, avizinham as pessoas como nunca, democratizam a vida social e fortalecem a identidade comum. Há novas organizações (ad hoc ou mais estáveis) que se criam, reforçando a coesão da sociedade para uma resposta concreta e eticamente qualificada. O segundo é o “axioma de Cyrulnik”. Boris Cyrulnik é um neuropsiquiatra francês, de origem judaica, que viu os pais morrer em Auschwitz, e tem hoje uns belos 82 anos. A sua tese sobre o trauma é que ele, se não é certamente reversível, pode ser, no entanto, reparável. Tal implica não pretender regressar ao estado precedente, mas pacientemente passar para uma etapa nova. A ferramenta que Cyrulnik propõe é a resiliência, uma categoria que ele recupera da Física. Trata-se ali da capacidade de um metal resistir a choques sem se despedaçar. Também nós humanos precisamos de resiliência para que, uma vez feridos, isso não nos retire completamente a confiança na vida, nem obstaculize para sempre a alegria de que somos herdeiros. Foi estes dias publicada, em Itália, a primeira sondagem sobre a espiritualidade em tempos de pandemia. Um primeiro dado verificável é que não aconteceu uma deserção dos crentes, que continuam nos 70%, nem os não crentes alteraram substancialmente o seu posicionamento, mantendo-se os 27% da população. Mas há uma curiosa pontuação em duas afirmações: naquela que defende que este é um tempo propício para sermos mais humanos e solidários; e naquela que afirma que a atual situação provoca, com maior intensidade, a que nos coloquemos a questão sobre o sentido da vida. Os axiomas de Quarantelli e de Cyrulnik são ajudas importantes no imediato, mas ainda têm a ver com as realidades penúltimas. A busca do sentido da vida pede, porém, que levemos o coração até àquela última. E essa é que representa para todo o ser humano a pergunta decisiva. Os cristãos, em cada Páscoa, é isso que fazem: expõem-se à radical pergunta pelo sentido das suas vidas e da vida do mundo. E, no anúncio que as mulheres vêm fazer aos discípulos, de que o sepulcro de Jesus está vazio, tateiam uma verdade definitiva que resgata a vida e a morte. Pois, como explicou São João no Livro do Apocalipse (21:4-5), as coisas como eram anteriormente passaram: em Cristo Ressuscitado, Deus faz novas todas as coisas. (Jornal Expresso)
O Senhor é meu pastor: nada me falta.

Na Semana de Oração pelas Vocações Consagradas, recordo o Salmo 23 que inicia com: «O Senhor é o meu pastor: nada me falta.» Salmo de esperança e confiança no Senhor, certo de que ele está connosco, nos guia e conforta. Precisamos de fé e muita esperança para viver esta semana num ambiente de pandemia. A oração é um ato radical de confiança em Deus como o Bom Pastor, que nos protege e guia no caminho que é a nossa vida. O Salmo 23 é um dos mais conhecidos e mais familiares por causa das suas imagens evocativas, também ouvidas em liturgias funerárias, onde o Senhor é apresentado como um pastor que não nos abandona nem no vale escuro da morte. Todo o cristão é vocacionado a esta confiança radical, no entanto os sacerdotes e os consagrados são chamados a uma maior intimidade com Deus, caso contrário tudo não passará do desempenho de uma profissão como todas as outras. Só nesta intimidade é que serão pastores que estão ao serviço do Povo de Deus seguindo o exemplo do Bom Pastor. Para que haja vocações sacerdotais e consagradas, os cristãos têm que viver a intimidade com Deus diariamente. Nos tempos que correm, sem poderem aceder às celebrações comunitárias, devem fazê-lo na “igreja doméstica” que é o seu lar. Sem esta intimidade vivida nas famílias e em cada um individualmente, as vocações dificilmente nascerão. O testemunho de vida que exigimos aos sacerdotes e aos consagrados, e ainda bem que o exigimos, não terá sentido nenhum se não o fizermos a nós próprios. Existem poucas vocações porque também, com a ansiedade que vivemos os nossos dias, não procuramos a intimidade com Deus. Se não conhecemos Deus como é que podemos dizer: “O Senhor é meu pastor: nada me falta”? Este salmo começa evocando o ambiente nómada da pastorícia e a experiência de conhecimento mútuo que é estabelecida entre o pastor e as ovelhas que compõem o seu rebanho. Esta imagem evoca uma atmosfera de confiança, intimidade e ternura: o pastor conhece as suas ovelhas uma a uma, chama-as pelo seu nome e elas seguem-no porque o reconhecem e confiam nele. Ele cuida delas, como bens preciosos, pronto para defendê-las, garantir seu bem-estar e fazê-las viver em paz. Façamos a nossa parte nesta semana, bem como nas seguintes: procuremos esta intimidade com Deus para, por um lado, que surjam novas vocações e, por outro, a nossa vida se revigore para enfrentar estes tempos de dificuldade. O BOM PASTOR 23 O Senhor é o meu pastor: nada me falta. Em verdes pastos me faz descansar e conduz-me a lugares de águas tranquilas. Conforta a minha alma e leva-me por caminhos retos, honrando o seu bom nome. Ainda que eu atravesse o vale da sombra da morte, não terei receio de nada, porque tu, Senhor, estás comigo. O teu bordão e o teu cajado dão-me segurança. Preparaste-me um banquete à frente dos meus inimigos. Recebeste-me com todas as honras e a minha taça transborda. A tua bondade e o teu amor acompanham-me todos os dias da minha vida. E habitarei na casa do Senhor, ao longo dos meus dias.
Honra os teus velhos
Um facto ao qual não nos deveríamos habituar é este: que na informação sobre as vítimas da pandemia venha associada a sua idade e a indicação de que eram afetados por outras patologias. Não nos damos conta, mas com isso descemos, de forma irreversível, alguns degraus daquele precioso património comum a que chamamos civilização. Não discuto que a intenção possa ser virtuosa, pois supostamente visa serenar os outros segmentos da população. Mas certas serenidades induzidas têm de ser questionadas, sobretudo se reforçam a vulnerabilidade de quem já tem de suportar tanto. É fundamental que para as nossas sociedades seja claro que há coisas piores do que a infeção com o vírus da covid-19. Se os velhos são reduzidos a números, e a números com escassa relevância humana e social, podemos até superar airosamente a crise sanitária, mas sairemos diminuídos como comunidade. Rodarão as estações. A esta primavera suceder-se-á outra, porventura, mais risonha, distendida e ampla. Mas nunca mais respiraremos da mesma maneira. É que não se envelhece para morrer. Penso no modo extraordinário e preciso como o livro do Génesis descreve a caminhada do patriarca Abraão. “Abraão expirou… velho e saciado de dias” (Gen 25:8). Sim, não se envelhece para morrer. Envelhecemos para nos saciarmos de vida e desse modo sentir que, mesmo escassa ou vacilante, a vida é o milagre mais espantoso, mais indescritível e pródigo que nos tocou em sorte. Com razão, James Hilmann escreveu: “Envelhecendo eu revelo o meu carácter, não a minha morte.” A velhice é um laboratório de vida presente e não só passada, uma escola onde se aprofunda o significado da esperança e do amor. Quando estes sentimentos, despidos já das contaminações do cálculo, distantes do enganador afã dos objetivos que lhe colocámos, revelam finalmente a sua natureza. O que é o amor em si, o que é a esperança sem mais — os velhos sabem-no melhor. E, contudo, resistimos tanto a perguntar-lhes, como se essa transmissão de sabedoria não nos fosse indispensável. Que os velhos se tenham tornado uma abandonada periferia — e os condicionamentos da pandemia podem ainda dramaticamente acentuá-lo — diz muito da crise interior que mina o nosso tempo. Há cem anos, no início dos anos 20 do século passado, Max Weber escrevia que, diferentemente das gerações que nos precederam, “os homens já não morrem saciados de vida, mas simplesmente cansados”. O dogmatismo com que hoje encaramos a produtividade, a eficiência e o consumo tornou-nos uma sociedade desligada de dimensões essenciais. Nela, os velhos perderam o seu papel social, pois deixámos de valorizar o depósito de conhecimento e experiência que representam, e passamos a apostar todas as nossas fichas numa ideia de progresso baseada na mudança contínua, sem freios nem memória. Precisamos de nos reconciliar com a velhice. É um erro grosseiro representar os velhos como um peso: experimentam-no quotidianamente as famílias que sem a colaboração dos avós não saberiam como conjugar as vidas profissionais com a vida familiar; sabem-no as crianças e os jovens que nos mais velhos encontram disponível um bem que mais ninguém lhes oferece com aquela gratuidade: tempo; constatam-no todos os espaços de convivência humana que dos velhos recebem testemunhos de sabedoria, afeto e resiliência, pois eles felizmente têm olhos para aquilo que mais ninguém vê. O antiquíssimo Livro do Levítico recorda-nos este imperativo de futuro: “Ficarás de pé diante do que tem cabelos brancos; honrarás o rosto de quem é ancião” (Lev 19:32). (Cardeal José Tolentino Mendonça)