As desgraças não são castigos, são caminhos.

Importa que aceitemos que é impossível viver longe do sofrimento. As dores fazem parte da estrutura da nossa existência. As histórias concretas e individuais de cada um de nós são compostas de espaços e tempos onde a alegria apenas se faz presente através da esperança. São pedaços do que somos, tão preciosos quanto os outros mais brilhantes. É curioso que seja a nossa fragilidade a permitir que nos aproximemos uns dos outros. Afinal, nenhum de nós tem uma vida isenta de amarguras. Por isso, é o nosso próprio rosto que vemos quando olhamos para alguém em busca do seu coração, seja quem for, rico ou pobre, velho ou novo, é sempre o nosso rosto que vemos. No fundo do nosso ser, no mais íntimo da nossa intimidade, somos tão fracos quanto fortes, somos um equilíbrio que não se quer perder, somos alguém que precisa dos outros para saber quem é e para poder ser quem é. Precisamos dos outros para nos vermos, tal como somos, no melhor e no pior. A desgraça do outro não me é estranha, as suas dores também chegam a mim. E é esse sofrimento que partilhamos que é o caminho que nos leva uns aos outros. É essa mesma fragilidade que se encontra em todos nós que nos faz irmãos que, por diferentes caminhos, buscam o mesmo fim. É possível agradecer uma desgraça, não pela maldade que traz consigo, mas por toda a bondade que desperta em nós e naqueles que estão à nossa volta. Somos responsáveis uns pelos outros. Ninguém deve deixar de estar no nosso horizonte. Por maior que seja a sua miséria, nunca será um miserável, porque enquanto puder sofrer ainda pode muito. O sentido, a força e a fortaleza da vida dependem da capacidade que temos de derrotar o nosso natural egoísmo e amar, mesmo que contra tudo o que parece lógico. (José Luís Nunes Martins)
O que é comungar – um texto do Secretariado da Liturgia.

Quando se fala de «Comunhão» e «comungar», habitualmente pensa-se na receção do Sacramento, no comer e beber correspondendo ao convite que Jesus fez e continua a fazer na Ceia da Instituição: «Tomai, todos, e comei»; «Tomai, todos, e bebei». Ao recordar-nos que «Comunhão» é um dos nomes deste Sacramento, a par de outros (começando por «Eucaristia», «Ceia do Senhor» e «Fração do Pão»), o Catecismo da Igreja Católica convida-nos a alargar o horizonte: a celebração integral – e não apenas um momento culminante da mesma – é toda ela «Comunhão» (CatIgCat 1329-1332). Sendo assim, ao falar em «Comunhão espiritual» temos de ampliar também o conceito e a prática. A belíssima oração de Santo Afonso de Ligório talvez precise de alargar horizontes… Na teologia e na piedade, somos tributários de uma infeliz desintegração que, a partir da Idade Média, comprometeu a abordagem, compreensão e vivência do mistério eucarístico: por um lado, a afirmação convicta da presença real e permanente de Cristo no Santíssimo Sacramento; por outro a consciência de que, na celebração da Missa, se torna realmente presente o único, perfeito e definitivo Sacrifício da Redenção; e, por fim, a Comunhão ou receção das Sagradas Espécies. O Concílio de Trento ilustra bem esta abordagem fragmentada. Efetivamente, dedica à Eucaristia 3 documentos distintos e «estanques»: o primeiro, sobre o Sacramento (Sess. XIII de 11-10-1545); o segundo, com a doutrina relativa a Comunhão sob as duas espécies e das crianças (Sess. XXI de 16-07-1562); o terceiro sobre o Sacrifício da Missa (sess. XXII de 15-09-1562). O II Concílio do Vaticano e a reforma litúrgica que se lhe seguiu quis promover numa visão unitária estas diversas dimensões, proporcionando uma vivência integrada do mistério eucarístico. Resta «passar» para a vida (compreensão, piedade…) este horizonte mais abrangente de «Comunhão» Na catequese da infância ensinava-se, outrora, que «comungar é receber Jesus na hóstia consagrada». A apresentação estava tão correta como incompleta. Reportando-nos à história da teologia ocidental, nessa abordagem a participação sacramental na Eucaristia focava-se exclusivamente no Sacramento (perspetiva de presença real), ignorando que comungar é, simultânea e indissociavelmente, «participar» no Sacrifício de Cristo com tudo o que isso supõe e implica. Por isso é que, para nós, fiéis do Rito Romano, se tornou indiferente receber o Sacramento com as espécies consagradas na celebração em que se participa (esta concreta atualização do memorial do Sacrifício da Redenção) ou recebê-la a partir do Sacrário. O Concílio recomendou vivamente «aquela mais perfeita participação na missa em que os fiéis, depois da comunhão do sacerdote, recebem, do mesmo sacrifício, o corpo do Senhor» (SC 55; CatIgCat 1388). Mas quem pensa, ao comungar, que está a participar no Sacrifício de Cristo que acaba de se tornar sacramentalmente presente no altar («todas as vezes que celebramos o memorial deste sacrifício realiza-se a obra da nossa redenção»: Oração sobre as Oblatas de Quinta-Feira Santa)? Quem pensa, ao comungar, que está a receber não apenas Cristo, mas também os frutos do seu Sacrifício redentor que «hoje aconteceu» de forma sacramental e incruenta (mas realíssima!) no altar da sua Igreja para que, precisamente possa «comungar» nessa oblação e associar-se generosamente a ela? Se se trata «apenas» de receber Jesus na hóstia consagrada, tanto vale a desta Missa como a que se conserva no Sacrário, consagrada noutra Missa qualquer… Por outro lado (ou consequentemente), a Comunhão era e é vista numa perspetiva quase exclusivamente individual (para não dizer privada). Por isso os fiéis têm dificuldade em perceber o motivo pelo qual devem permanecer de pé depois de terem recebido as Sagradas Espécies. As normas litúrgicas dizem que se deve estar de pé durante a Comunhão. Não comungaram já? Não! Temos de explicar que ainda estão a comungar! Que 20, ou 200, ou milhares de receções do Sacramento na mesma celebração não perfazem 20, 200 ou milhares de «comunhões» mas uma só «Comunhão»; que se forem muitas, são divisão e não «comunhão». Sente-se quem precisar de o fazer, por razões de saúde; que quase todos permaneçam de pé durante a Comunhão em que, pela participação de muitos no mesmo Pão, todos se tornam um só Corpo em Cristo.
Aos que não vão saber do bem que fizeram.

Da banda sonora da série televisiva Band of brothers, faz parte um hino que se chama “Requiem for a soldier”, que começa com as seguintes palavras: «You never lived to see / What you gave to me / One shining dream of hope and love / Life and liberty» («Nunca viveram para ver / Aquilo que me deram / Um brilhante sonho de esperança e amor / Vida e liberdade»). Estas palavras, simples e belas, foram escritas em memória dos que na Segunda Guerra Mundial deram as suas vidas na luta contra os que estavam do lado da morte como sistema, dos que reservavam a liberdade e a esperança apenas para si e os seus, negando-as a todos os demais, não apenas descartáveis, mas urgentemente destinados à aniquilação. Ora, com as devidas adaptações, estes versos podem ser dedicados aos descartáveis que já deram as suas vidas – o único bem que tinham, que eram, pense-se bem nisto – pelos outros, durante a terrível crise pandémica Covid 19. Haja o que houver, sobreviva quem sobreviver – quem escreve estas linhas pode não sobreviver, cada um de nós pode não sobreviver –, não há mundano futuro para quem morreu neste e por este serviço, para o bem dos outros. Voluntários e involuntários, estes novos soldados desconhecidos – pois assim irão permanecer como vergonha dos que os não equiparam devidamente em tempo, pessoalmente mortos para a memória dos triunfantes – são o melhor de nós, e o seu sacrifício é a oblação e o próprio altar em que a humanidade ainda mostra que merece existir. São estes, os que já morreram, e os que ainda estão vivos e se dedicam totalmente ao combate insano contra a doença e a estupidez que persiste em imperar, que são o melhor de todos nós. Guardo – e peço a Deus que nunca deixe de guardar – a imagem do teu belo rosto marcado pelo amor. Não esqueço e não quero esquecer tal imagem Não há e nunca haverá modo de lhes pagar: aos mortos, nada pode ser mundanamente feito; aos que sobreviverem, nada que possa ser feito pode sequer aproximar-se em termos de grandeza do que têm feito, do que, através do que fazem, são. Como a parte boa da humanidade se transcende em bem nestes tempos de doença extrema! Como são belas as vossas Mãos, com ou sem luvas, enfermeiros e médicas, médicos e enfermeiras, pessoal de saúde, todo, que trabalha em quase desespero para retirar de tanto sofrimento e real desespero alheio algum bem: bem que pode ser uma vida resgatada ou uma vida perdida, mas não abandonada, não abandonada por estes, mas abandonada pelos que tinham poder e tempo para tomar medidas e preferiram perversamente servir as suas agendas pessoais e de clique. Como é bela a tua cara, Enfermeira com vincos da máscara no rosto nunca estiveste tão bela, meu amor! E quem vê? Quem vê a tua beleza sublime? O paciente a quem acabaste de fechar os olhos definitivamente, esse viu? Certamente viu. E quem não te comprou o equipamento, que viu? A tão belo rosto marcado pelo amor, nem sequer posso beijar. A tão belo corpo – pois o corpo é isto, um instrumento de bem, não uma coisa para prostituir por poder – nem sequer posso abraçar. Que Deus infunda a sua graça de amor sobre estes heróis e, depois, a sua graça de perdão sobre quem os condenou Mas guardo – e peço a Deus que nunca deixe de guardar – a imagem do teu belo rosto marcado pelo amor. Não esqueço e não quero esquecer tal imagem, não por fetichismo icónico, mas para poder sempre beijá-lo em efígie de memória, já que não o posso fazer em carne. Podem agora as bestas que vilipendiam a carne passar a amar a carne de um rosto e de um corpo dedicado ao amor. Pelos que não vão poder ver o bem que fizeram, temos a obrigação ética, política, antropológica de não esquecer a sua grandeza, sobretudo quando comparada com a mesquinhez dos que os condenaram, por falta de meios, a uma morte politicamente indigna, mas ética e antropologicamente santa. Não vejo melhor termo. Que Deus infunda a sua graça de amor sobre estes heróis e, depois, a sua graça de perdão sobre quem os condenou. (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)
O poder da oração.

Já escrevi aqui algumas vezes que vivemos um tempo difícil e diverso. Difícil, porque vemos partir entes queridos, conhecidos ou mesmo pessoas com quem nunca nos cruzamos. Diverso, porque confinados a casa ou, no mínimo, a poucos contatos sociais. Este ambiente deixa-nos um pouco mais ansiosos porque desconhecemos como o futuro se vai desenrolar e quem vai sobreviver. Nos meus contatos virtuais ou mesmos pessoais, pois refugiei-me na casa paterna. pressinto esta ansiedade e até o medo. Como sou “natural” de uma vila quase aldeia, na caminhada que procuro fazer diariamente, consigo falar com vizinhos e conhecidos mantendo a distância recomendada sem dificuldade. A dispersão das habitações com os seus jardins e quintais permitem-no dialogar a distâncias superiores a cinco ou mais metros. Graças a estas características, também vejo, as tentativas que aqueles que consideramos pertencentes aos grupos de risco (se é que não somos todos), procuram ter num dia a dia “normal”. Mas o suspiro, dos mais jovens aos mais velhos, é comum. Numa destas caminhadas e enquanto pensava que tinha que chegar a casa para rezar o teiço com os meus pais, lembrei-me de São João Paulo II e da sua aparição à histórica varanda da Basílica de São Pedro logo após a sua eleição. Procurei as suas palavras: «Não tenhais medo! Abri antes, ou melhor, escancarai as portas a Cristo! Ao Seu poder salvador abri os confins dos Estados, os sistemas económicos assim como os políticos, os vastos campos de cultura, de civilização e de progresso! Não tenhais medo! Cristo sabe bem “o que está dentro do homem”. Somente Ele o sabe!» 22 de Abril de 1978 No clima que vivemos agora, quarenta e dois anos depois, as suas palavras assumem um significado perturbador: num mundo completamente fechado dentro de suas fronteiras, nós nas nossas casas, como é que abrimos as portas? Também já aqui vos escrevi das lâmpadas acesas nesta escuridão medonha que são todos os que trabalham noite e dia nos serviços médicos, na distribuição e venda dos bens essenciais para a nossa sobrevivência, como já vos escrevi acerca daqueles voluntários que auxiliam os mais necessitados, seja na distribuição de comida aos “isolados” ou aos sem abrigo, seja na procura de medicamentos ou simplesmente no auxilio e companhia dos mais desamparados. Mesmo assim… E aqueles que não podem ou não conseguem fazer nada disto? Como é que podem abrir as portas a Cristo? Ao ler uma entrevista do Padre e Professor de Filosofia, Anselmo Borges, iluminou-se o meu coração e a minha mente. Não é que não tenha já pensado, refletido e até rezado: A Igreja Doméstica! «A Páscoa celebra a paixão e morte de Jesus e a sua ressurreição, e este é o centro da fé cristã. Neste mistério, revela-se que Deus, o Mistério último, indizível, se revelou como Amor incondicional em Jesus. Evidentemente, a ressurreição não é a reanimação do cadáver; nela, o que se afirma é que Jesus, crucificado, está vivo para sempre, ele é o Vivente em Deus, que é a Vida e a fonte da vida.» Este Kerigma que fez com que o cristianismo chegasse até aos nossos dias, apesar de tantas infidelidades dos seus membros, pode e deve ser vivido nas nossas casas. Nestes dias em que não podemos frequentar as celebrações comunitárias da nossa fé, podemos “celebrar” nos nossos lares. De que «servem as igrejas-edifícios sem a Igreja vivida por cada um dos cristãos e sem as “Igrejas domésticas” em cada casa e família?» Esta pergunta/afirmação de Anselmo Borges é a resposta para abrir as portas a Jesus Cristo quando não podemos auxiliar o Senhor nos doentes e nos abandonados. Se acreditamos no poder da oração, então transformemos os nosso lares em “grupos de voluntariado oblativo”! (© iMissio, 2020.)
Gestas, Dimas e Jesus

Os crucificados daquele dia eram três: Gestas, Dimas e Jesus. Gestas resolveu provocar Jesus desafiando-o a fazer um milagre que os salvasse a todos daquele castigo… Dimas repreendeu Gestas dizendo-lhe que, ao contrário deles, Jesus nada tinha feito de mal, pelo que não merecia aquela condenação. Dimas dirigiu-se então a Jesus, pedindo-lhe que se lembrasse dele quando estivesse no seu reino. Jesus respondeu-lhe, dizendo: Em verdade te digo que hoje mesmo estarás comigo no paraíso. Algumas questões que talvez mereçam que nos esforcemos por dar uma resposta sincera: Quantas vezes sou eu igual a Gestas? Aceito eu as consequências das minhas escolhas? Ou prefiro culpar os outros por isso? Quantas vezes peço a Deus que faça milagres para me poupar aos resultados lógicos das minhas escolhas? Quantas vezes condeno Deus por me ter feito livre? Quantas vezes sou eu igual a Dimas? Sou capaz de amar e mesmo corrigir alguém que comete uma injustiça, ainda que seja apenas pelas suas palavras? Quantas vezes admito que sou responsável pelas minhas decisões, ações e por todas as consequências? Sou capaz da humildade de pedir a alguém bom que se lembre de mim, como se a minha presença nos seus pensamentos já fosse, para mim, um conforto e um alívio da minha angústia? Serei eu em algum momento, ainda que seja o último da minha vida aqui, capaz de reconhecer os meus erros, arrepender-me de forma verdadeira deles, estendendo a mão a quem desrespeitei, suplicando o seu perdão? Quantas vezes sou eu igual a Jesus? No meio do sofrimento, sou capaz de me esquecer de mim e pensar nos outros e nas suas dores? Lembro-me de quem me pediu para eu não o esquecer? E depois, cumpro? Sou capaz de perdoar os que me ofendem? O que dou a quem me pede pouco? Até que ponto sou capaz de me dar e sofrer por aqueles que amo? (José Luís Nunes Martins)