Os dias que nos esperam: Anunciação e semana Santa, Papa e Pai-Nosso, pandemia e Via-Sacra

«Nestes dias de prova, quando a humanidade estremece pela ameaça da pandemia, gostaria de propor a todos os cristãos a unirem as suas vozes para o Céu.» É de uma absoluta simplicidade o primeiro gesto proposto por Francisco para os próximos dias, marcados pela multiplicação dos contágios e dos mortos numa pandemia que nunca imaginámos, no início do terceiro milénio. O papa convida os cristãos de todas as confissões a recitar o Pai-nosso, ao meio-dia (11h em Portugal continental) de amanhã, 25 de março, dia da Anunciação. Hoje, não poucos batizados têm dificuldade em saber que dia é esse. Ou talvez o saibam da história da arte, que com Giotto, Beato Angélico, Leonardo e centenas de outros representaram durante séculos a mesma cena: um anjo que pousa os pés em Nazaré, na Galileia, no pátio onde a adolescente Maria se ocupa da sua atividade. Talvez a interpretação mais próxima da sensibilidade contemporânea seja a simplicidade da Anunciação na cela 3 do Beato Angélico, no convento de S. Marcos, em Florença. Nela, entre as paredes nuas, um anjo de maravilhosas asas, está diante de Maria, já curvada, sobre si mesma, atónita: como se já tivesse percecionado a incarnação daquele filho em si. Jovem mãe e jovem anjo, ambos inclinados e absortos pela vontade do Criador, levada pelo mensageiro, acolhida por uma rapariguinha. Há, nesta Anunciação despojada, a estupefação de quem reflete na saudação – «ave, cheia de graça…» – e no anúncio: «Conceberás um filho, dá-lo-ás à luz, e chamá-lo-ás Jesus». Há a vertigem do instante em que Maria medita, e o mundo inteiro está imóvel, suspenso pelas suas palavras, até que ela, com a voz fresca dos seus quinze anos, pronuncia o sim, o “fiat”, que transforma a história. Este é o momento do ano escolhido por Francisco para que os cristãos digam juntos a primeira oração aprendida em crianças, para pedir que a doença se detenha. Como se fazia nos tempos da peste, e como não se pensaria que voltaria a repetir no tempo em que os seres humanos conhecem o genoma e clonam a vida em laboratório. Mas desta vez a natureza ergueu-se com a sua força desmedida, e não se consegue conter. Morrem sobretudo os idosos, mas estremecem também as pessoas na força da vida, perguntando-se, e talvez como nunca antes: e se for para amanhã? E nesta perspetiva sem precedentes, vendo revirar a sua vida, da qual se sentiam donos. A oração pedida pelo papa não é, todavia, um severo “mea culpa”, mas um primeiro ato filial: apenas um Pai-nosso (o “mea culpa” vem depois, é quando nos sentimos filhos amados que começamos o olharmo-nos em nós mesmos. A abrir os olhos, como o cego curado no Evangelho de João, capítulo nono, que Francisco nos diz para relermos esta semana). Um Pai-nosso, como muitos não o dizem desde que eram crianças. A 25 de março, exatamente nove meses antes do Natal: nove meses, como a gravidez das mães dos seres humanos. Neste dia próximo do equinócio da primavera, quando a natureza revive depois do frio. O segundo gesto anunciado por Francisco para estes angustiosos dias de março é dia 27, sexta-feira de Quaresma, às 18h00 (17h00): «Escutaremos a Palavra de Deus, elevaremos a nossa súplica, adoraremos o Santíssimo Sacramento, com o qual, no fim, darei a bênção Urbi et Orbi, a que será ligada a possibilidade de receber a indulgência plenária». Tudo isto na Praça de S. Pedro completamente vazia. Como vazias estarão as nossas igrejas, na semana de Páscoa. Podermos viver só à distância a missa da Última Ceia, a via-sacra, a vigília pascal que desagua no rejubiloso explodir dos sinos, ao anúncio da ressurreição. Mas talvez não sejam precisos outros passos na via-sacra deste ano: basta pensar nas enfermarias de certos hospitais de Itália ou de Madrid, nas colunas de camionetas repletas de caixões em Bérgamo, nos idosos ceifados sem poder saudar os filhos, nos hospitais e nas unidades de cuidados intensivos. A “via crucis” do ano 2020 habita na carne dos nossos velhos, dos doentes de todas as idades, muito mais dolorosa do que qualquer representação. Que esta dolorosa Quaresma do Pai-nosso reencontrado – talvez balbuciado a custo, buscando na memória – seja também profundamente Páscoa. Certeza de que não vivemos para nada, e não morremos sós. Certeza viva de ressurreição. (Marina Corradi In Avvenire -Trad.: Rui Jorge Martins)
Dicas para Pais em tempo de pandemia

Medo vs Pânico O que as crianças e os adolescentes pensam e sentem depende ainda muito da atitude dos adultos. Eles são o principal espelho da sua estabilidade emocional. Os medos existem e protegem-nos: são estruturantes. O pânico desorganiza, produz mais riscos sobre uma situação de tensão. Uma função dos pais é serem verdadeiros ansiolíticos das respostas dos filhos. Informação, Conhecimento É importante mantermo-nos informados. As novas tecnologias de informação permitem o acesso a um mundo infinito de factos e números: geram e desfazem expectativas e ilusões. Mas a função de filtro é muito importante nestes momentos. Nem tudo interessa. Nem tudo é verdadeiro ou tem uma base científica. Demasiada informação já não esclarece: confunde. Convém não esquecer nunca que aceder a informação não é sinónimo de ter conhecimentos (muito menos sabedoria). Desligar Habituamo-nos a estar sempre ligados, totalmente dependentes da imagem e do ecrã, que agora já é o do telemóvel. O acesso ao que se passa no mundo exterior é imediato, pode levar-nos directamente do interior de nossas casas a um quarto de hospital na China ou em Itália. Ninguém se organiza emocionalmente bem se permanecer como contínuo receptor de tudo quanto sucessivamente está a acontecer. Limitar tempos para estar ligado, a receber informação. Gerar outros para poder desligar, respirar o silêncio, a pausa, um certo vazio estruturante; ajude os mais novos a fazer o mesmo. Isto Não É uma Guerra A pandemia por coronavírus não é uma guerra. É uma situação difícil que obriga a adaptações importantes e temporárias. Todos os seres humanos estão do mesmo lado! Estamos em família, juntos, não há pais ou filhos a partirem para outros locais, a morrerem longe ou de forma inesperada. Por outro lado, a história recente indica que o homem tem vencido estas batalhas, mesmo que por vezes leve algum tempo. Há cem anos atrás (quase) todos os infectados morriam de tuberculose. Há trinta, o mesmo se passou com o VIH e a Sida. As vacinas estão a caminhos, outros medicamentos também. O tempo que demora a chegar a resposta é cada vez menor! Riscos; Do Possível ao Provável Neste tipo de situação morrem, infelizmente, pessoas. São sempre os de maior idade, os já fragilizados por outras doenças. Em 2019, nos dois picos de gripe “comum”, só em Portugal morreram cerca de 3.300 pessoas; jamais atingiremos este número na situação actual. Estamos a agir bem! Também no nosso país, quando há cerca de 10 anos surgiu a epidemia por gripe A, os primeiros dados apontavam para cerca de 2 a 3 milhões de infectados e o risco de 75.000 mortos. No final, contaram-se perto de 167.000 infectados, faleceram 122 pessoas. Lidar com o Desconhecido O que talvez mais inquiete nesta situação é o desconhecido. O que não se vê e o que não se controla. O homem habituou-se demasiado a ter a (falsa) ideia de que sabe e domina tudo em seu redor; o aumento da sua esperança de vida e todos os avanços científicos e tecnológicos criaram a falsa ideia de uma imortalidade física ou, pelo menos, de uma amortalidade, isto é, não morrer mais de causas naturais. Mas, crentes de todos os maravilhosos avanços que conseguimos, vale a pena respeitar um conceito de transcendência: nem tudo depende de nós. Será que ainda conseguimos? Olhar para Dentro Viver a restrição de uma circulação pública, estar confinado a um espaço de casa ou de quarto, obriga a parar. A cessar transitoriamente determinado tipo de estímulos. A repensar sobre o âmago da vida, da nossa existência até. Então, há que aproveitar para distinguir o essencial do acessório, o central do satélite. Abandonar um registo habitualmente auto-centrado. Rever o conceito de “ser” muito para além do “ter”; “ser no mundo” é, afinal, “ser no outro”. Simplificar Como no final de um poema de Mário Cesariny, perguntar a nós próprios: “afinal, o que importa?” Por vezes, como referiu o arquitecto Mies van der Rohe, “less is more”: menos é mais. Para quê tanto objecto em casa? Tanta peça de roupa no armário? Tanto detalhe ou complicação no dia a dia? Tanta hora presencialmente gasta no trabalho, afinal a característica maior deste novo “homo laborans”? Eric Schumacher, economista do final do século xx, também adiantava ao referir-se a um sistema em que as pessoas contam: “small is beautiful”. Pedir Ajuda, Manter a Esperança As situações de tensão podem conduzir ao que designamos como um “pensamento terminal”, sentido como sem ajuda possível ou sem sentimento de esperança algum. Pedir e aceitar ajuda não tem que ser um sinal de fragilidade; todos somos humanos e também nos reconhecemos em diversos pontos fracos. Pedir ajuda pode ser apenas um sinal de humildade e lucidez. Por outro lado, a esperança é a luz que todos recebemos, mas também aquela que emitimos. Há coisas que, mesmo no escuro, brilham: são incandescentes. Assim também nós temos que ser agora: luz de luz. Ou, como se ouvia numa bela canção do grupo The Smiths, “there is a light that never goes out” Prosseguir, sendo Há um conceito importante em saúde mental, que nos remete para a possibilidade de prosseguir, mesmo diante de situações adversas: “going on beign”, que apela à unidade de cada pessoa, não só enquanto ser individual, mas sobretudo como ser social, em constante interacção com os outros. E também recorda a ideia de que, por vezes, não é mesmo possível fazer mais nada do que serenamente deixar fluir o tempo, boiar à tona de águas difíceis e crer que, mesmo assim, a força da corrente nos levará em breve para a areia quente de uma praia tranquila. Vai tudo correr bem! VVV… Vamos Vencer o Vírus! Vamos pôr um V no nosso olhar, nas palavras, nos sorrisos, nos abraços e nos beijos que, por agora, nos aconselham a não dar. Vamos por um V às nossa janelas. [©Pedro Strecht, Médico Pedopsiquiatra]
Uma pandemia, um desafio à solidariedade
«Somos ondas do mesmo mar, folhas da mesma árvore, flores do mesmo jardim» – frases que acompanharam a recente oferta de máscaras protetoras da China à Itália Foi o mundo inteiro surpreendido pela difusão do vírus Covid-19 a uma escala que muitos considerariam inimaginável nos tempos de hoje, de tão benéficos progressos científicos. Parecemos regressados a outros tempos, os das pestes medievais ou das epidemias de há cem anos. Este facto faz-nos refletir na ilusão a que nos conduz o excesso de confiança nas capacidades humanas e na ciência. O ser humano continua a ser vulnerável diante da doença e da morte e deve reconhecer humildemente essa sua vulnerabilidade. Mas outras importantes lições se podem colher deste surpreendente fenómeno. A necessidade de reduzir a mobilidade para prevenir e evitar a difusão do vírus faz-nos descobrir como muitas das nossas deslocações (desde logo, as aéreas) não são verdadeiramente indispensáveis, ou mesmo necessárias. Distinguir o necessário do supérfluo é algo de salutar, não só para este efeito sanitário, mas para outros, como o da salvaguarda do ambiente. Diante desta pandemia, gostaríamos de destacar, sobretudo, o que ela representa como desafio à solidariedade social. Só nesse espírito ela poderá ser vencida. A solidariedade é, na visão da doutrina social da Igreja, «a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum, ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos somos verdadeiramente responsáveis por todos» (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 193). Uma pandemia faz correr o risco de ver no outro uma ameaça, alguém que nos pode contaminar. Há o risco de que prevaleça a mentalidade do “salve-se quem puder”, ou “cada um por si”. Também há o perigo do reforço da xenofobia, quando se encara o estrangeiro como potencial transmissor. Pelo contrário, o combate à pandemia exige uma consciência mais apurada do bem comum. Só unidos poderemos superar o desafio. Dizem os especialistas (e revela-o a experiência dos países mais gravemente atingidos) que o coronavírus não causa na maioria das pessoas infetadas, individualmente consideradas, danos acentuados, mas o seu maior perigo situa-se numa perspetiva comunitária, de saúde pública: pela sua rápida difusão, por atingir grupos particularmente vulneráveis e por exigir dos serviços de saúde recursos que poderão superar as suas disponibilidades (como se está a verificar em Itália) Impõe-se, por isso, superar uma mentalidade individualista. Não há que pensar apenas nos perigos que corro, que serão maiores ou menores, mas nos riscos que correm outros, as pessoas mais vulneráveis. Não há que pensar tanto na contaminação de que eu possa ser vítima, mas na contaminação que eu, sem o saber, possa provocar noutros. É a consciência do bem comum que nos leva a ter em conta a repercussão social de cada nosso comportamento, por mais insignificante que possa parecer. Há que pensar no que sucederia se o meu comportamento se generalizasse, no bem, ou no mal, que decorreria dessa generalização. Pensar desse modo faz toda a diferença. Há que dar todo o apoio aos grupos mais vulneráveis, como os idosos, evitando de todos os modos que eles tenham que se expor a riscos (fazendo compras por eles, por exemplo). Que um dos efeitos desta pandemia seja o reforço da consciência coletiva de que somos todos diferentes, que muitos são mais pobres e necessitados do amor do próximo, ou seja, carentes de cada um de nós. E há que dar todo o apoio aos profissionais de saúde, que nesta difícil situação se entregam sem reservas à sua tão nobre missão. Em tempo de Quaresma, tempo de travessia do deserto para chegarmos à Luz da Ressurreição, forçados a uma quarentena “solidária” que exige de nós um profundo respeito pelos outros – mas em que a natureza humana pode revelar o seu melhor…, ou o seu pior… – rezemos, na privacidade das nossas famílias ou na solidão das nossas casas, ou mesmo dos nossos “quartos”: «Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num lugar oculto, recompensar-te-á» (Mt 6-7). Que Deus que nos «vê [desse] lugar oculto» nos ilumine e nos conceda o dom da fortaleza para que encontremos novas formas de vida neste mundo que é a nossa casa… Pelas vítimas desta pandemia, pelos grupos que mais riscos correm e pelos profissionais de saúde, os membros da Comissão Nacional Justiça e Paz dirigem a Deus as suas orações. (Comissão Nacional Justiça e Paz)
Estamos de parabéns

Num supermercado fiquei a ver uma funcionária que estava a carregar as prateleiras. Havia outras pessoas à volta dela. Só duas interromperam o trabalho dela para fazer perguntas irritantes, tais como “acha que ainda vêm os iogurtes de ananás?” e “tem alguma ideia quando é que vai trazer os chiringuitos com sarapatel?” Impressionaram-me a paciência e a bondade dela. Era como se estivesse a colocar-se no lugar dos interlocutores. Não é essa a essência da humanidade, reconhecer o eu no outro? Há um erro epistemológico em dizer que os trabalhadores da saúde não precisam do aplauso de quem vai às janelas. É escusado dizer que precisam é de melhores condições de trabalho porque não há escolha entre as palmas e a dignidade profissional: porque é que não podem ter ambas as coisas? Fazemos bem em ir às janelas. Deveríamos também agradecer às multidões imensas de trabalhadores, como aquela funcionária do supermercado, que nos aturam e que tornam a nossa vida aturável. São as pessoas sem escolha, as pessoas que têm de ir trabalhar, as pessoas que agora correm mais riscos do que nós sem serem por isso recompensadas. Essas também merecem as nossas palmas. São um motivo de orgulho e de tranquilidade. O mínimo que podemos fazer é aprender com elas. Também estão de parabéns as outras pessoas: as que fazem fila, as que colaboram, as que partilham, as que compreendem, as que pensam nos outros. Somos todos nós. Portugal e os portugueses estão a portar-se com elevação e sentido de comunidade. É bom fazer parte deste povo. (Miguel Esteves Cardoso)
Ele não é o que tu pensas!

Ele não é o que tu pensas. Não anda preocupado em medir os teus pecados, nem a tua vida. Anda, isso sim, sensível àquilo que tu és verdadeiramente. Anda atento à diferença que tu fazes naqueles que são diferentes. Ele não é o que tu pensas. Não anda obcecado em controlar-te. Anda contente e alegre por saber que O encontras de livre vontade. Anda sorridente e despreocupado, porque sabe que a tua aceitação a Ele não te é imposta, mas proposta. Anda, que nem um Pai babado, por ver que Tu és a Sua cara chapada sempre que te coloques do lado daqueles que ninguém quer. Ele não é o que tu pensas. Ele é todo poderoso no amor. Vive rendido a este Seu poder. Tão rendido que Se rendeu a ele por mim, por ti e por nós. Anda como só o amor pode andar: de esperança. Anda de esperanças a dar nova vida em todos os dias da tua vida. Anda em presença concreta que muitas vezes se revela na Sua palavra. Muita outras vezes revela-se nas brincadeiras dos teus amigos e nos abraços sinceros de quem se perdeu por entre as perdas da vida. E em tantas outras vai-te piscando o olho na beleza de um pôr do sol e na calma do campo que te fala de como Ele sempre está em tudo e em todos. Ele não é o que tu pensas. Não anda sedento por vingança, nem pronto a punir. Anda de olhos brilhantes e cheio de confiança. Anda a colocar toda a Sua riqueza neste Seu projeto de nos querer para algo maior. Anda empenhado em acolher depois de todas as nossas enCRUZilhadas. Ele não é o que tu pensas. Ele é o que Tu vives e experiências com toda a tua vida, pois Ele é Aquele que sempre está! Hoje se O quiseres encontrar verdadeiramente, pergunta-te: quantas vezes O descobriste em ti? (© iMissio, 2020)