Deus está connosco.

A palavra Esperança é neste último mês, bem como nos próximos, o desiderato mais pensado, desejado, rezado e expresso pela grande maioria da população quando ouve as palavras coronavírus ou covid-19. Como enfrentar um “inimigo” que não se vê e que é tão letal como este vírus? Sem dúvida que esperamos na classe médica e farmacêutica para que estes encontrem uma cura e uma vacina. No entanto, se estamos atentos às noticias dos diversos pontos do mundo onde se combate este mal, vamos “descobrindo” que não basta a ciência. A Religião e a Fé, são “outras” realidades onde esperamos também uma cura para esta pandemia. Em plena Semana Santa, o cristão é chamado a aprofundar a sua fé, de uma forma mais intensa, sentida e persistente. É chamado a viver a sua religião como uma realidade integrante e não separada da sua “vida terrestre”. Estamos a terminar uma Quaresma que nos remeteu para o essencial desta vida: a casa, a família, a alimentação e os demais bens essenciais para a sobrevivência. Pudera que tenhamos sido capazes de acrescentar Deus…. Esta clausura forçada meteu a nu a nossa ilusória omnipotência humana. Grande é a consciência da natureza temporária da nossa existência. Esta clausura pode e deve-nos fazer ver que o nosso estilo de vida, tantas vezes egoísta, fechado sobre nós mesmos ou desconfiados dos outros, só nos ajuda a permanecer neste tempo de dificuldade. O “por quê a mim?”, ou o “por quê agora?” não nos ajuda a sair deste drama. Muitos perguntam-se pelas razões que tudo isto acontece. É “castigo de Deus?”, dizem os apocalíticos; É “apenas a natureza?”, dizem os não crentes. Talvez os crentes devessem fazer outro tipos de perguntas mais pessoais nestes tempos difíceis e diferentes. “Para quem vivo? Em quem gasto a minha vida? Em quem invisto? O que é que me dá vida verdadeira? Em que é que a vida se alimenta? Quem me dá esperança?”… Que nestes dias da Semana Maior, sejamos capazes de renovar a nossa relação com Deus através da oração pessoal e familiar. Participar, através dos meios de comunicação, nas cerimónias do Tríduo Pascal de corpo e alma. Assim, estaremos verdadeiramente em comunhão com os crentes e seremos plenamente Igreja. Que nestes dias da Semana Maior, sejamos capazes de renovar a nossa relação com a família, sem pressas e sem gestos ou palavras costumeiras. Saber escutar e saber descobrir a riqueza da família através dos pequenos gestos de amor renovado. Esta “paixão dolorosa” terminará e celebraremos a Páscoa. Como crentes, ainda que no sofrimento, ousamos pensar no que vem depois. Devemos esperar que tudo isto não seja em vão e que uma nova vida deve surgir. Deus está connosco. Se temos dúvidas, olhemos para a Cruz.
A Cruz, enxerto do Céu na Terra, trono onde o amor penetra no tempo

Estamos a entrar num tempo que nos faz pensar (cf. Mateus 26,14– 27,66). «Todos os seres humanos vão a Deus no seu sofrimento, choram por ajuda, pedem felicidade e pão, salvação da doença, da morte. Assim fazem todos, todos, cristãos e pagãos… Os seres humanos vão a Deus no seu sofrimento, encontram-no pobre, ultrajado, sem abrigo nem pão, consumido… Os cristãos estão próximos de Deus no seu sofrimento» (D. Bonhoeffer). O sofrimento que então ardeu na paixão de Jesus e hoje arde nas cruzes sem fim onde Cristo continua crucificado nos seus irmãos. A Semana Santa é a semana da suprema proximidade, nela entramos como garimpeiros à procura de ouro. Mesmo isolados nas suas casas, os cristãos estão próximos, estão em empatia próximos do sofrimento de quantos pedem vida, saúde, pão, conforto. E onde respiram melhor é junto à cruz. Olho o Calvário e vejo um homem nu, pregado e moribundo. Um homem com os braços escancarados num abraço que nunca renegará. Um homem que não pede nada para si, não grita lá de cima: recorda-te de mim, tenta compreender, defende-me… Esquece-se e preocupa-se com quem lhe morre ao lado: hoje, comigo, estarás no Paraíso. O fundamento da fé cristã é a coisa mais bela do mundo: um ato de amor total. A suprema beleza da história é aquela que aconteceu fora de Jerusalém, sobre a colina, onde o Filho de Deus se deixa pregar, pobre e nu como um verme ao vento, para morrer de amor. A cruz é o enxerto do Céu dentro da Terra, o ponto onde um amor eterno penetra no tempo como uma gota de fogo, e arde. E escreve a sua narrativa com o alfabeto das feridas, o único que não engana. É daqui que provém a comoção, a admiração, o enamoramento. Após dois mil anos, sentimos também nós como as mulheres, o centurião, o ladrão, que na cruz está a suprema atração de Deus. Sei que também eu não compreendo. Mas no fim convence-me não um raciocínio subtil, mas a eloquência do coração: «Porquê a cruz/ o sorriso/ a pena inumana?/ Acreditai-me/ é muito simples/ quando se ama» (J. Twardowski). Tu que salvaste os outros, salva-te a ti mesmo, se és o Cristo. Dizem-no todos, chefes, soldados, o ladrão: faz um milagre, conquista-nos, impõe-te, desce da cruz, e acreditaremos em ti. Qualquer homem, qualquer rei, podendo-o, desceria da cruz. Ele, não. Só um Deus não desce do madeiro (D.M. Turoldo), o nosso Deus. (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)
Cuidado! Isto ainda não é o fim do mundo!

Vivemos um tempo novo, as nossas rotinas foram alteradas, quase que já temos outras… Parece que mudámos de continente, de cultura ou de século… Um vírus veio mudar quase tudo no nosso mundo. Uns têm pânico de serem contagiados, outros medo de contagiar. Uns têm vontade de fugir, enquanto outros se sentem chamados a lutar na linha da frente, cuidando dos que já são vítimas destas circunstâncias… Nestes tempos muito duros, existem duas tendências comuns: a de se comprometer a grandes mudanças e a de desistir. Ora, as crises não são os melhores momentos para prometer, nem tão-pouco para resignar ao que quer que seja, de forma definitiva. São tempo de nos protegermos enquanto não conseguimos superar o que nos oprime. É preciso paciência para suportar a adversidade sem perder a nossa identidade. Ainda que custe. Muito. Face a uma crise, há quem negue tudo! Mesmo as maiores evidências, ainda que estejam diante dos olhos. Outros lutam contra tudo com todas as suas forças, numa espécie de fuga para a frente em direção ao que dispara sobre eles. São meio-heróis e meio-patetas… Depois ainda há os que esperam. Os que suportam e estudam até ser tempo de trabalhar e superar. Tentam ter algum bom senso, não levar a vida demasiado a sério e tirar partido do bom que sempre existe! Se fosse o fim do mundo, talvez fosse mais claro, porque não haveria amanhã para ninguém! Como ainda não é o apocalipse… é preciso ter paciência para aguentar as adversidades que são sempre mais dolorosas quando se estendem no tempo e persistem, apesar do que façamos… Quem se sente inútil, pode sempre, pelo menos, pegar no telefone e fazer-se presente na vida de quem sofre de solidão, abandono ou esquecimento! Com o silêncio atento de quem ama! Sê quem és, sem promessas nem desistências. (José Luís Nunes Martins)
A Paixão nos dias de coronavírus

Escrevo com embaraço estas linhas. Parecia-me, com efeito, ouvir a voz, rouca pelos gritos em demasia, de Job, que rejeitava as palavras dos amigos teólogos que o tinham vindo consolar, definindo-os como «infusões de malva», incapazes de extinguir a sua dor lacerante. Ou, começando a escrever algumas linhas, ouvia ressoar ao ouvido a frase áspera de um outro sábio bíblico, Qohélet, que me advertia: «Todas as palavras estão gastas, e o homem não pode mais usá-las» (1,8). Por fim, decidir rasgar o silêncio, como fizeram o papa e muitos outros pastores com palavras intensas, só para dizer que todos experimentamos na alma os mesmos estremecimentos dos muitos doentes com a boca colada a um ventilador. E sobretudo para estar ombro a ombro com a multidão de parentes, amigos, vizinhos paralisados pelo sofrimento dos seus amados, impossibilitados de dar uma só carícia nos seus rostos, ou inclusive de os acompanhar até ao fim com um rito de despedida. Mas há uma outra razão que convida todos nós (por agora) sãos a não calar, e está precisamente ligada aos iminentes dias da Semana Santa, quando à nossa frente caminhar Cristo nas suas últimas horas terrenas. Imagino-o como no filme “Andrei Rublëv”, do grande realizador russo Andrei Tarkovski, enquanto avança tropeçando na neve, colorindo-a com o sangue das suas feridas, arrastando, exausto, a cruz, seguido pela multidão dos pobres agricultores e dos últimos daquelas terras. O Deus cristão é diferente das divindades antigas como Júpiter, relegadas para o seu mundo olímpico dourado, apáticos em relação ao sofrimento humano. É, pelo contrário, um Deus que escolheu assumir o mesmo nosso bilhete de identidade, feito, sim, também de alegria, mas sobretudo de limite, de dor e de morte. Ainda que estejamos distantes das igrejas desertas, ouviremos da voz do sacerdote solitário a narrativa evangélica daquelas horas últimas de um Deus verdadeiramente irmão da humanidade. E veremos desfilar diante dos olhos, vividas nele, todas as desolações destes nossos dias. Experimentando na sua carne a nossa humanidade mísera, frágil e mortal, depôs nela para sempre uma semente de eternidade e de esperança destinada a desabrochar. É este o sentido da Páscoa, «a outra face da vida em relação àquela que está voltada para nós» Também Ele tem medo e horror da morte, cujo rosto severo de apresenta diante dele e de nós, ainda que o tivéssemos antes exorcizado e ignorado: «Pai, se é possível, passe de mim este cálice» envenenado. Também Ele experimenta o isolamento dos amigos, os discípulos que permanecem distantes, ou, como no caso de tantas pessoas sós doentes, o abandonam. Também Ele tem a carne ferida pelas torturas, e experimenta até a pior das solidões, o silêncio do Pai («Deus meu, Deus meu, porque me abandonaste?»). Por fim, também Ele, por causa da crucificação, morre como muitos doentes de coronavírus, por asfixia, depois de ter emanado um respiro extremo. Tinha razão um teólogo mártir do nazismo, o alemão Dietrich Bonhoeffer, quando no seu diário na prisão escrevia: «Deus em Cristo não nos salva em virtude da sua omnipotência, mas pela força da sua impotência». Sim porque naqueles momentos não se dobra sobre um qualquer doente para o curar, como tinha feito durante a sua vida terrena, mas torna-se Ele próprio sofredor e mortal. Não nos liberta do mal, mas está connosco no /em> mal físico e interior. No entanto, mesmo quando é um cadáver sacudido aqui e ali, como acontece hoje às vítimas do vírus, Ele é sempre o Filho de Deus. É por isto que – experimentando na sua carne a nossa humanidade mísera, frágil e mortal – depôs nela para sempre uma semente de eternidade e de esperança destinada a desabrochar. É este o sentido da Páscoa, «a outra face da vida em relação àquela que está voltada para nós», como dizia o poeta austríaco Rainer M. Rilke. Muitas outras coisas ensinou este mal a quem crê e também a quem não crê. Desvelou-nos, com efeito, a grandeza da ciência, mas também os seus limites; reescreveu a escala dos valores que não tem no seu vértice o dinheiro ou o poder; o estar em casa juntos, pais e filhos, jovens e idosos, repropôs cansaços e alegrias das relações não só virtuais; simplificou o supérfluo e ensinou-nos a essencialidade; tornou-nos irmãos e irmãs dos muitos Job, dando-nos o direito até de protestar com Deus, de erguer as nossas perguntas e lamentos a Ele. Mas sobretudo revelou um valor supremo, o amor. Muitos dos leitores conhecem o romance do escritor colombiano Gabriel García Márquez, “O amor nos tempos de cólera” (1982), um título que poderia ser transcrito para o coronavírus. Um título que é verdade sobretudo nos muitos médicos, enfermeiros, voluntários, agentes vários, prontos a ir para além da lei do «amar o próximo como a si mesmos», para seguir aquela extrema de Jesus: «Não há amor maior do que aquele que dá a vida pelos seus amigos». Na Bíblia ressoa 365 vezes esta saudação divina: «Não ter medo!». É quase o «bom dia» que Deus repete a cada aurora. Repete-o também nestes dias de terror. E para quem perdeu a fé, proporei a confissão do mesmo escritor García Márquez: «Desafortunadamente, Deus não tem um espaço na minha vida. Nutro a esperança, se existe, de ter eu um espaço na sua». (Card. Gianfranco Ravasi, Presidente do Consleho Pontifício da Cultura. Trad. Rui Jorge Martins)
Em dias de regresso a casa – A crise na reflexão de um pároco

Uma vez que me solicitam, partilho publicamente esta reflexão que já tinha enviado em privado para alguns amigos padres, com algumas adaptações e acrescentos. Em dias de regresso a casa e de tirar o pó à liturgia das horas, tenho andado à volta com os salmos e o profeta Isaías que me parece ver, sempre, bem mais longe que qualquer poeta do saltério. Em cada salmo é fácil prever um final feliz a misericórdia de Deus é sempre infinita. O salmista sabe disto mas é poeta e por isso não pode deixar de fingir o que deveras sente. Isaías não deixa mais a coisa nas nossas mãos. Nestes dias que parecem ser os primeiros do que está para vir, o profeta deixa uma visão clara. A natureza vem cobrar e misturar as espécies. O lobo brinca com o cabrito ou o morcego e a cobra brincam com o vírus que o homem vai ingerir e transformar em arma de destruição de si mesmo. Massiva mas não de todos …. Os velhos, os que já não sonham, vão para a terra da promessa de leite e mel, a ver se a coisa se recria, por cá, com aqueles que ainda vamos…. comovidos e mudos. As crianças … são o melhor do mundo… Essas podem meter a mão no ninho da víbora ou a boca na boca do vírus que continuarão, para nosso bem, a saltar e a fazer birra como se nada fosse. Este tempo vai exigir uma palavra nova à teologia e fará surgir um sentido novo para a história e para os modos de acreditar. A palavra dos teólogos vai ser fundamental e a teologia cristã, provavelmente, a única que existe, vai ter de tomar a dianteira para uma síntese cada vez mais ousada. Não basta remeter para a Páscoa do Senhor, tem de ajudar a ler a pedra removida e o sepulcro vazio, como este tempo. Precisaremos de uma palavra unânime, não uniforme e aqui vejo com muita clareza a oportunidade de um novo Concílio para a Igreja. Que exagero, dirão alguns. O atraso evidente do cumprimento do anterior Concílio a isso obriga. Não bastou a renuncia de um Papa, os vários sínodos que temos assistido, a cobardia na tomada de algumas decisões óbvias, os cismas iminentes, a hipocrisia de tantos documentos forjados no lado mais dentro do armário, o banco que ninguém assalta cheio de dinheiro duvidoso. Por isso esta é uma hora de muita esperança. Muita esperança porque estou convencido que depois deste regresso a casa e às origens, muitos, mas mesmo muitos, quando tudo passar, voltarão à igreja quanto mais não seja para cumprir as promessas. Será a hora de um reencontro feliz com o que de melhor a Igreja tem: as comunidades, os grupos, os movimentos. Da Cúria Romana não espero nada a não ser que se extinga, ela e a pandemia. O Papa terá ousadia para ainda mais? Claro que sim. Continua a necessitar de quem diga com ele e por ele; deixam-no sempre muito só, mesmo quando a Praça não está vazia. Deus o ajude e a nós nos dê saudinha. (Pe Nuno Antunes)