Transfiguração… O que é isso?

Vivemos tempos difíceis. Vivemos um tempo em que um vírus nos coloca em alerta constante. Vivemos tempos em que o lazer ou em que o “godere”, ou seja, o usufruir, não nos leva a lado nenhum. O “depois” preocupa-nos. Vivemos um tempo em que o “já” e o “agora”, não nos satisfazem por completo. Perante uma epidemia que parece alastrar-se pelo nosso país, o ser feliz aqui e agora, parece distante… Curioso saber quem é que Jesus convidou a subir ao monte. Curioso saber o que Jesus disse aos seus apóstolos depois deste acontecimento: «Não temais!» Os cristãos são chamados a não vacilar perante os acontecimentos do mundo. São chamados a permanecerem firmes perante a tribulação; perante a dificuldade de perceber o mundo ou os acontecimentos do mundo. Não é fácil aceitar o sofrimento dos que nos são próximos; dos que nos são familiares; dos que nos são «tudo» neste mundo… Que a «Transfiguração» nos acalente nestes dias! Que «o mundo que há de vir» nos alimente e nos seja força para enfrentar as tormentas destes dias. A fé não é magia. É um dos temas que tenho abordado com todo um universo de boa gente empenhada num mundo melhor. A fé não nos salvaguarda de momentos maus. Não! A fé não é uma porção mágica! A fé fortalece-nos perante circunstâncias más da vida! Reparem no que Jesus disse a Pedro, Tiago e João: «Não conteis a ninguém esta visão, até o Filho do homem ressuscitar dos mortos». (Mt 17, 9) A Verdade só nos sará dada nos fins dos tempos! Existem muitas coisas neste mundo que não nos serão compreendidas aqui e agora! Este é o nosso drama. Este é o drama do Homem que quer saber tudo e agora! Este é o drama do ser humano que se julga sabedor de toda a vida! E que é só assim que se compreende… Mas a verdade é que não é. Por mais que queiramos saber TUDO do que somos, não o saberemos… Eis a razão porque não compreendemos todo o sofrimento… Porque não compreendemos a morte sem razão… Que mal fizeram tantos dos que perecem perante este vírus? Haverá apenas um explicação naturalista, evolucionista? A ou as razões da natureza não nos satisfazem! Somos seres conscientes e com memória do passado e esperançosos no futuro… A Transfiguração nos acalente perante um presente sofredor e um futuro de esperança… A fé salva-nos na medida em que não nos esquecemos da “nossa parte”, ou seja, a fé que não é magia, “obriga-nos” a seguir as recomendações que a ciência e a razão humanas nos exigem. A Transfiguração exige-nos que sejamos completos neste mundo enquanto cá estamos. Pedro, Tiago e João queriam montar uma tenda para lá permanecerem. Porém, Jesus disse-lhes: ‘Meus amigos, há um mundo para transformar! Há um mundo, cheio de problemas; cheio de “vírus” onde é preciso ser luz e sal!’ Que a nossa fé não seja vã nestes dias de tormenta. Sejamos capazes de nos transfigurar perante esta tormenta chamada de coronavírus! Deus é o nosso horizonte de felicidade! Bem hajam todos aqueles que são luz nas trevas; que são bonança na tempestade. A Transfiguração nos acalente perante um presente sofredor e um futuro de esperança… A fé salva-nos na medida em que não nos esquecemos da “nossa parte”, ou seja, a fé que não é magia, “obriga-nos” a seguir as recomendações que a ciência e a razão humanas nos exigem. A Transfiguração exige-nos que sejamos completos neste mundo enquanto cá estamos. Pedro, Tiago e João queriam montar uma tenda para lá permanecerem. Porém, Jesus disse-lhes: ‘Meus amigos, há um mundo para transformar! Há um mundo, cheio de problemas; cheio de “vírus” onde é preciso ser luz e sal!’ (© iMissio, 2020. )

Que esperança damos ao mundo de hoje?

Graças à revelação de Deus feita por Jesus Cristo, a nossa fé diz, através do apóstolo João, que «Deus é amor, caridade». Portanto, a fé cristã tem sempre como rosto a caridade, o amor que os cristãos devem viver no mundo no meio dos outros homens e mulheres, e a Igreja deve ser o espaço da caridade visível de Deus entre os humanos. É significativo que Jesus nunca tenha procurado o reconhecimento da sua missão, e, consequentemente, da missão dos discípulos, mas ofereceu um critério muito simples e fundamental: «Por isto saberão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros». O único sinal, o único selo de se ser discípulo e discípula de Jesus é dado não por atitudes religiosas e cultuais, litúrgicas – e isto di-lo um monge que pratica abundantemente a liturgia –, não por declarações de fé, mas simplesmente pelo “mandamento novo” do amor para com os outros. Este é o mandamento último e definitivo: «Que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei», diz Jesus. A lógica destas palavras é paradoxal. Jesus não diz: «Como Eu vos amei, amai-me». Não, diz: «Amai-vos entre vós, porque, assim fazendo, amar-me-eis». Não basta invocar o Senhor, não basta invocar a sua palavra, não basta comer e beber com Ele na Eucaristia para se ser cristão; é preciso viver a caridade, como Jesus a viveu, até ao extremo, até ao dom da própria vida no serviço dos outros. Uma caridade nunca pratica de modo repetitivo e esquemático, mas sempre reinventada e renovada nos gestos e nas ações. Não se trata de cristãos fora do mundo, mas no mundo de outra maneira, no mundo sem ser do mundo; sem medos e sem exigir serem vencedores Precisamente por isto, o juízo do Filho do homem sobre a humanidade de cada tempo será fundado sobre as ações que cada ser humano tenha vivido em relação aos outros. Jesus não nos adverte com um juízo que diga respeito às nossas debilidades de homens e mulheres frágeis na sua condição carnal, mas em relação às nossas omissões, quando encontramos (ou não encontramos) o outro, o necessitado, o faminto, o sedento, o estrangeiro, o pobre, o doente, o recluso. Aquilo que nos é pedido é encontrar o outro enquanto ser humano, irmão ou irmã em humanidade, igual em dignidade. Trata-se de ir ao encontro do doutro, procurando discernir a sua necessidade, escutando o seu sofrimento, a sua invocação, até delas cuidar numa relação hospitaleira marcada pela gratuidade. Esta caridade vivida decide da pertença a Cristo. Certamente que os cristãos são chamados a dar uma forma prática, concreta, à solidariedade, à igualdade, à justiça. A caridade cristã exige sempre uma opção pela humanização em absoluta gratuidade, sem ânsias de evangelização ou de autoconservação da Igreja. A conceção cristã da caridade é eversiva e pode ser «anormal» (palavras de Paul Valadier, jesuíta), no sentido de permanecer surda às vozes mundanas, à miragem das audiências, e distancia-se daquilo que na história é vencedor e mais facilmente comprovado. Não se trata de cristãos fora do mundo, mas no mundo de outra maneira, no mundo sem ser do mundo; sem medos e sem exigir serem vencedores. É assim que a esperança, precisamente porque está encerrada em dimensões individuais, já não é esperança, e muito menos a cristã: ou se espera por todos, ou não se espera! A Boa Nova que os cristãos são chamados a dar à humanidade é só a do amor oferecido de maneira incondicionada, um amor que nunca é merecido. Em extrema síntese, é este anúncio, feito com autoridade: «Viste um homem, viste um irmão? Viste Deus» (palavras de Jesus transmitidas por Clemente de Alexandria). Mas na missão, que esperança? Talvez esta seja a coisa mais difícil hoje para o cristianismo e para a missão. Toda a história da Igreja, com efeito, está marcada pelo testemunho da caridade, em particular com os pobres e os doentes. Nunca ninguém duvidou desta capacidade da caridade, mesmo hoje e mesmo nas nossas Igrejas. Mas que esperança damos aos homens e às mulheres de hoje? Vivemos num tempo marcado por muitos medos, um tempo em que se extinguiram e anestesiaram as grandes esperanças das ideologias e das utopias secularizadas. O nosso tempo é muitas vezes colocado sob o sinal da crise, ou mesmo do fim. A precariedade do presente e a incerteza do futuro alimentam medos que habitam a nossa convivência, enfraquecem a confiança, paralisam a insurreição das consciências. O papa Francisco pede com insistência para que se combatam e vençam os medos como antídoto decisivo para o fechamento num horizonte individualista, asfixiante, dobrado sobre si, e por isso absorvido num vórtice de egoísmo. Mergulhado nesta situação, o cristão sofre hoje a tentação de refugiar-se antes de tudo numa espiritualidade sedutora, cativante e eficaz, uma espiritualidade que consiste em apresentar a salvação como bem-estar individual. Estamos diante de um teísmo ético, terapêutico, que procura harmonia e bem-estar quotidiano, e aspira ao conforto interior. O primado é concedido a um Deus “Energia”, à oferta de um moralismo ditado pela antropologia, à salvação como paz e calma interior. E é assim que a esperança, precisamente porque está encerrada em dimensões individuais, já não é esperança, e muito menos a cristã: ou se espera por todos, ou não se espera! Mas então, que esperança anunciar na missão cristã? É-nos pedida uma grande conversão, talvez semelhante àquela que o cristianismo do primeiro século teve de realizar para abrir-se do judaísmo a todos os gentios da Terra Estou cada vez mais convicto de que devemos partir da narração cristã por excelência: o amor vence a morte. Nas diferentes culturas humanas acabou sempre por se pensar, de várias formas, num duelo entre amor e morte, “eros” e “thanatos”, os dois inimigos por excelência. Não é por acaso que o Antigo Testamento, no Cântico dos Cânticos, afirma que o amor pode combater a morte, mesmo que não chegue ao ponto de dizer que dela é vencedora. Detém-se na expressão: «Forte como a morte é o

Amar é crescer e envelhecer a dois

Amar não é admirar uma obra-prima imutável. Sermos humanos é estarmos condenados a mudar a cada dia. Por isso, amar é comprometer-se a fazer um caminho a dois, com tudo o que isso implica em termos de mudanças subtis, imprevisíveis e constantes. Devemos aceitar o outro tal como é. Sem isso não há amor. No entanto, importa compreender a dinâmica do amor ao longo do tempo, uma vez que não somos seres estáticos e imutáveis. Todos nós, todos os dias, mudamos um pouco. A atenção a esse quase nada que muda é tão importante quanto a consciência do que se mantém. Quando estamos perto demais, tendemos a considerar que conhecemos bem o outro, quando, tantas vezes, pouco a pouco, ele se foi alterando a um tal ponto que já não é senão parecido com o que estamos convictos que é. Amar é caminhar em conjunto na vida, estabelecendo um sentido em conjunto e seguindo-o. Ao mesmo tempo que nos vamos encontrando, ajudando e educando um ao outro. Sim, cada um de nós é tão único que uma simples ideia pré-feita é o suficiente para estragar tudo. Importa indicar a quem nos ama o que somos, o que fomos e o que queremos ser. Com paciência, tanta quanta a que precisamos ter para o escutar com toda a atenção quando ele estiver a fazer o mesmo. Amar é aprender com o outro. Não é justo pedir a alguém que nos ame tal como somos, porque isso cria e alimenta uma aparência ilusória de estabilidade que não corresponde à verdade. Na vida, a maior parte de nós começa por ser amado de uma forma incondicional pelos nossos pais. Olham-nos, mas na esmagadora maioria das vezes só vêem o nosso interior, por isso é que podemos ter 50 anos e os nossos pais continuam a ver o mesmo coração! Mas é um coração que nunca é o mesmo, que cresce, aprende, sofre e ama… mantendo-se inteiro e autêntico, nunca é igual. Há adultos, menos maduros, que tendem a acreditar que o amor é serem amados tal como foram enquanto filhos. No entanto, amar é o oposto disso. É abnegar-se ao ponto de cuidar do outro como se fossemos pais dele. Quem quer amar tem de crescer e passar da atitude carente de criança à posição de generosidade adulta a que se dá o nome de amor. Algo que se deseja recíproco, mas que deixa de existir assim que começa a contabilização do que se dá e do que se recebe. Talvez o amor seja a maior de todas as aventuras, porque basta um instante para que tudo mude, sem que isso altere a nossa vontade de fazer o outro feliz. Quem ama é capaz de algo pouco natural: deixar-se para trás, dando prioridade ao outro. (José Luís Nunes Martins)

Casa, Igreja doméstica

O peregrino do absoluto não pode parar: «“Ide à cidade e virá ao vosso encontro um homem trazendo um cântaro de água. Segui-o, e, onde ele entrar, dizei ao dono da casa: O Mestre manda dizer: ‘Onde está a sala em que hei-de comer a Páscoa com os meus discípulos?’ Há-de mostrar-vos uma grande sala no andar de cima, mobilada e toda pronta. Fazei aí os preparativos”» (Marcos 14,13-15) Será a última casa em que Jesus entra livremente. O último espaço acolhedor é esta habitação de um amigo, provavelmente rico, uma casa de dois pisos, bem arranjada, com espaço suficiente para Jesus e o grupo – não pequeno – daqueles que o tinham seguido desde a Galileia: os discípulos e muitas mulheres «que tinham subido com Ele a Jerusalém» (Marcos 15,41). Aqui celebra a última ceia com os amigos, a primeira de muitas, incontáveis outras ceias. Sem hesitações, os primeiros cristãos fazem suas também as opções práticas de Jesus e escolhem o espaço acolhedor e quente de uma casa para se reunirem para partirem o pão em sua memória, e para escutarem os apóstolos. É um facto relevante que a liturgia cristã nasça, por assim dizer, “em casa”, numa atmosfera familiar, íntima e afetiva. Apesar de continuarem a frequentar o templo e a sinagoga, os discípulos reencontram-se no contexto hospitaleiro de uma casa e da família que a habita: é na casa de Maria, mãe de João, de sobrenome Marcos, que se recolheram em oração quando aí chega, de noite, Pedro, milagrosamente libertado do cárcere (cf. Atos 12,12): entre as paredes de uma casa amiga, onde a vida é mais íntima e livre, criativa e geradora. Na experiência cristã mais autêntica, Deus é de casa. Fez-se homem, opta por habitar fora das paredes do templo, entra e habita na casa dos homens, almoça e ceia com eles, partilha com os homens os espaços da quotidianidade A primeira estrutura da comunidade de que temos memória é a assembleia em casa, ou “igreja doméstica”, que no mundo romano assumirá o nome de “domus ecclesia”, literalmente “casa da comunidade”. Esta experiência dos séculos incandescentes prolongar-se-á até envolver com a memória dos primeiros tempos as catedrais e os edifícios de culto, que tomarão de “domus” o nome de “duomo”, e de “ecclesiae” o nome de “igreja”, na origem não edifício, mas assembleia. A primeira catedral não é aquela solene e monumental das cidades, mas é e permanece doméstica e familiar. E o primeiro altar do mundo é a mesa de casa. Durante os três primeiros séculos foram escolhidos edifícios bem mimetizados no tecido urbano, e na maior parte dos casos de dimensões modestas. Casas que do exterior pareciam habitações particulares normais, enquanto no interior compreendiam locais destinados ao Batismo, à Eucaristia, à preparação daqueles que iniciavam o caminho da fé. Não se tratou, todavia, só de uma necessidade ou de um acaso. Na experiência cristã mais autêntica, Deus é de casa. Fez-se homem, opta por habitar fora das paredes do templo, entra e habita na casa dos homens, almoça e ceia com eles, partilha com os homens os espaços da quotidianidade. Vela quando eles dormem, está com as crianças quando brincam, acompanha os gestos e ofícios de cada dia, o trabalho, o estudo, os barulhos e os odores da cozinha. Só um Deus que se fez homem pode escolher habitar fora das paredes do templo, na mesma casa do homem, na “profana” morada dos mortais. E será assim para sempre, porque está na natureza própria do cristianismo. Por vezes, surpreende-me um sonho: que belo seria se voltassem as “domus ecclesiae”! Se voltassem em cada bairro, em cada avenida, em cada condomínio as igrejas domésticas e familiares, íntimas e quentes, onde os amigos se encontram para escutar a Palavra, interceder pelo mundo, partir o pão em memória dele. A primeira comunidade cristã radicou-se na quotidianidade expressiva da casa. Dali pode repartir. Porque ali, onde a vida celebra a sua liturgia, respira o Senhor da vida. (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)

O medo dos pobres é o novo e verdadeiro racismo

«Eu não sou racista, mas…» Quem fala assim poderá ter razão. Não, não é racista. Não detesta todos aqueles que envergam uma pele “diversamente branca”. Não é como Hitler, que se recusa a apertar a mão a Jessie Owens, que em 1936 chega a Berlim, contra o parecer de uma parte significativa do Comité Olímpico dos EUA e dos seus próprios irmãos negros, e “rapina” em poucas horas quatro medalhas de ouro. Quem fala assim, tiraria de boa vontade com um Owens uma selfie, e dela se vangloriaria com os seus compadres, que também não são racistas, «mas…». «Mas» o quê? Provavelmente não é propriamente racista, mas muito pior. Sofre de “aporofobia”, palavra que em Portugal ainda não entra nos principais dicionários, e que talvez nunca chegue à linguagem comum. É formada por dois termos gregos: “áporos”, sem recursos, e “phóbos”, temor: medo dos pobres. Eles, os pobres, são desprezados e postos à margem. Se em Portugal desembarcassem frotas de norte-africanos bem vestidos, com o porta-moedas cheio de cartões de crédito, alguém levantaria algum tumulto contra o invasor? Acontece já para os desportistas, as modelos, todos aqueles que pertencem ao grande circo do sucesso. Se és rico, a cor da tua pele, a tua religião, a tua terra de origem são detalhes irrelevantes. O pobre negro é desprezado não porque é negro, mas porque é pobre. As causas devem ser procuradas na natureza profunda da sociedade de consumo a que pertencemos muito mais profundamente do que poderíamos supor, ou seja, com o corpo, mas também com a alma. Se somos aquilo que consumimos, e medimo-nos a nós próprios e somos medidos a partir dos nossos consumos (hábitos, automóvel, telemóvel, férias… estilo de vida em geral), quando perdemos isso, deixamos de ser alguém. Pode acontecer por ganância, por gastarmos mais do que podemos; ou por desgraça, porque perdemos o trabalho, despesas médicas inesperadas secarem os nossos recursos, ou qualquer outro imprevisto. Quem se torna pobre perde a identidade, se a identidade depende do que consome. Explica-o bem o sociólogo Pietro Piro: o pobre «é o fantasma da mentira em que vivemos». A mentira: os pobres são a outra face da sociedade de consumo, os descartados que ela necessariamente produz. É cruel dizê-lo, mas há quem – os devotos da capitalismo predatório, os idólatras do consumo – precise dos pobres, porque quanto mais aumentarem os excluídos, mais os grupos de privilégio podem sentir-se semelhantes aos deuses. Venceram por causa dos seus méritos; os pobres perderam por causa dos seus deméritos, e por isso são desprezados. Uma mentira colossal, mas é assim. “Aporofobia” foi declarada “palavra do ano” em 2017, em Espanha, tendo entrado no dicionário da Real Academia. Levou-a à ribalta a filósofa Adela Cortina, autora de “Aporofobia, a recusa do pobre”. Expulso do circo do consumo, o pobre precipita-se num vazio socio-político, ficando sem papel social. O pobre, privado de capacidade contratual, torna-se um indivíduo “não necessário”. Inútil, supérfluo, sacrificável. Indigno de piedade e compaixão. Um perdedor sem direitos. Daqui emergem todos os lugares comuns que enchem bocas ávidas e áridas: «Primeiro nós, depois os outros»; «porque fazem tantos filhos, se são pobres?» (como se eles, os ricos, os fizessem); e «eu não sou racista, mas…»: têm razão, são muito piores. (© iMissio, 2020. )