Ou se faz muito ou se faz bem

Hoje parece que queremos tudo. Quase ninguém está disposto a abdicar de possibilidades. São raríssimos os que compreendem que, para seguir um caminho até ao fim, é necessário não seguir por todos os outros caminhos. A vida oferece-nos imensas possibilidades, mas querer realizar muitas é o suficiente para que não se chegue à grandeza de nenhuma… nem uma… O consumismo garante que se tem o direito a tudo o que é bom, deixando de fora apenas o que é mau ou menos bom. Mas é mentira, faz o contrário do que promete porque abre vazios cada vez maiores… O mundo à nossa volta pode parecer que carece da nossa atenção constante, ao ponto de julgarmos que sem nós tudo ruiria. Contudo, o mundo passa muito bem sem nós… sendo que o tempo que perdemos a viver de urgência em urgência é tempo que nos afasta daquilo de que devemos cuidar com toda o coração. Vidas atarefadas, almas cansadas, existências frustradas. De que importa fazer muitas coisas se não se chega a fazer nenhuma como deve ser? A vida supõe que sejamos capazes de amar o que fazemos e o amor supõe uma dedicação verdadeira. Podemos dedicar-nos a vários projetos, pessoais, familiares e profissionais, mas devemos ter sempre em vista que importa gerir bem as nossas horas e forças, porque são limitadas. Mais importante do que passar o tempo a sonhar com mais e novas experiências, lugares e pessoas, é essencial aprender a escolher, a dizer muitos nãos por cada sim, com a consciência de que isso não é uma perda, mas a garantia de que o sim é mesmo um sim. (José Luís Nunes Martins)
Não matarás

É na véspera do debate sobre a eutanásia, na Assembleia da República, que voltamos a ouvir nas igrejas de todo o mundo o antigo mandamento: «Não matarás». Na longínqua caminhada para a Terra Prometida, muitos séculos antes de Cristo, o legislador israelita estabeleceu um princípio com o intuito de proteger o outro da arbitrariedade alheia, em especial, o mais fraco e o indefeso, o estrangeiro ou o escravo. À semelhança do que aconteceu com outros povos, esta lei não deixava margem para dúvidas. Porém, foram admitidas algumas exceções, uma vez que o castigo da pena de morte foi e é lamentavelmente aplicado em diversas situações previamente definidas na lei. Muitos anos depois, o novo Moisés, o próprio Deus, foi ainda mais exigente com os seus discípulos. Não basta não matar. Até os pagãos respeitam esse princípio. Trata-se de uma lei universal, não há dúvida. Mas é preciso ir mais longe: se o princípio regulador da comunhão com Deus é o amor ao próximo, então é necessário vigiar o coração para que não congemine o mal nessa fábrica imprevisível de afetos. Na oração de todos os dias repetimos: «Não nos deixes cair na tentação, mas livrai-nos do mal». Qual é a pior das tentações? De que mal se trata? Curiosamente, séculos depois, mais precisamente em 1920, outro judeu, conhecedor das tradições do seu povo, introduz a expressão «pulsão de morte» num corpo doutrinal que iria marcar o pensamento ocidental: a psicanálise. Apesar de contestada por alguns e continuamente reformulada até ao fim da vida, Sigmund Freud mantém este princípio cujas manifestações são tão diversas no quotidiano como o masoquismo e o sadismo. Freud não abdica da noção de «pulsão de morte» já que ele é também vítima dela. Não tivesse fugido para Inglaterra, teria terminado os seus dias numa câmara de gás. Matar é fácil. Hoje mais ainda. Pode até matar-se à distância, sem sofrimento e sem danos colaterais. Uma morte limpa e segura, diriam alguns, enquanto comem umas pipocas. Se Hitler tivesse estes meios teria tido ainda mais sucesso. Hitler mobilizou uma nação para matar. Estaline, quando morreu, foi chorado por muitos como um pai muito querido mesmo tendo assassinado cruelmente muitos dos seus filhos. Se tivesse ao seu alcance o poder destrutivo de hoje, tudo teria sido mais rápido e limpo. E com menos encargos para o Estado. O Ocidente está em crise. A possibilidade da morte assistida, já legalmente legitimada em alguns países, diz muito sobre o modo com lidamos com o tema do sofrimento. Umas vezes somos indiferentes. Outras, no entanto, queremos desembaraçar-nos desse incómodo, oferecendo à vítima uma doce morte, «limpa e sem danos colaterais», para não nos doer a consciência. O Ocidente quer afrouxar o laço que contém a «pulsão destrutiva». Esquece-se que a pulsão de morte expressa em palavras e em gestos, mesmo que aparentemente compassivos, é imparável. Amanhã seremos as suas vítimas. Assistimos à morte lenta do antigo princípio «não matarás». Morremos todos aos poucos. (© iMissio, 2020.)
O outro como revelação de um dom

Vivemos num tempo marcado pela “crise”, na qual eu leio sobretudo uma situação de “aporia”. Aporia como incerteza, como não compreender e não saber, como não saber dizer nem decidir, fazer opções… E isto porque falta a operação árdua e paciente do discernimento, da leitura dos sinais dos tempos e das urgências emergentes hoje no nosso mundo globalizado, mas um mundo que deve ser antes de tudo lido e compreendido como mundo ocidental e europeu, o nosso mundo. E o que observamos nesta hora? Uma incapacidade dos católicos de estar na polis, uma afonia devida a uma astenia da sua fé, mas também a um distanciamento, hoje consumado, do empenho político cristãmente inspirado. Como escreveu Severino Dianich, «a atual insignificância dos católicos na política é o sintoma de um descolamento da vida da fé do crente da perceção das suas responsabilidades políticas». (…) Hoje, creio que é urgente aprender novamente a arte do diálogo, seja nas nossas Igrejas e entre elas, seja na sociedade. Somos autenticamente chamados a reinventar com inteligência e criatividade uma cultura do diálogo, para poder viver verdadeiramente juntos, e não só uns próximos dos outros. Gostaria, por isso, de fornecer alguns traços elementares para empreender este itinerário que está à nossa frente e nos espera. A primeira etapa, parece-me, consiste na suspensão do próprio juízo para considerar o outro com simpatia. Tudo começa por aqui. O outro não se revela sempre “belo”, não gera necessariamente coisas, ou a atração ou a curiosidade. Na sua alteridade, os outros são “diferentes”, muitas vezes capazes de nos contradizer. Ter uma atitude de simpatia significa, num primeiro tempo, aceitar não compreender o outro, procurando, ao mesmo tempo, compartilhar-lhe os sentimentos, na convicção de que a verdade do outro tem a mesma legitimidade que a minha. Isto não significa a inexistência da verdade ou a equivalência de todas as verdades. Cada um pode manifestar a sua verdade com humildade, e deverá estar disposto a receber dos outros a verdade que sempre nos precede e supera. Mesmo quando estamos convencidos de que a nossa verdade dá sentido à nossa vida. As perguntas do outro tornam-se as minhas, as suas dúvidas sacodem as minhas certezas, as suas convicções interpelam as minhas. Então descobriremos que no diálogo conseguimos chegar a pensamentos nunca antes pensados A simpatia implica a empatia: impelir-nos-á ao encontro do outro não um impulso do coração, mas a capacidade de nos colocarmos no seu lugar, de o compreender a partir de dentro, fundando-se na nossa comum condição humana. A empatia permite perceber que a existência, por natureza, nunca é isolada, que «nenhum homem é uma ilha»: existe só na comunicação e na consciência da existência dos outros. O egocentrismo, a indiferença, o cinismo, o rancor são vencidos por este sentimento: dá-se, assim, espaço ao outro passando do medo ao acolhimento, portanto à abertura ao encontro. Mas simpatia e empatia são só as condições de possibilidade de um diálogo fecundo de transformação e enriquecimento recíprocos: com efeito, do diálogo nunca se sai como se entrou, e o desafio do diálogo implica a disponibilidade para empreender esse caminho. Ao dialogar, emergem visões inéditas do outro, há uma aproximação ao fim dos preconceitos: há a descoberta daquilo que se tem em comum, mas também daquilo que falta a cada um. O espaço intermédio entre os dois rostos é a terra de ninguém que espera ser cultivada e tornada fecunda por palavras de acolhimento e reconhecimento. Esta terra do meio é o espaço do diálogo. E dialogando, dois rostos encontram-se um diante do outro, numa proximidade capaz de abrir à vida. Ocorre assim a contaminação e a deslocação das fronteiras: o outro, que eu colocava numa dimensão remota, revela-se muito mais próximo e semelhante a mim do que eu imaginava. A fronteira não é anulada, mas de lugar de conflitos e mal-entendidos torna-se lugar de pacificação e de encontro. É verdade que se não esperamos nada do outro, o diálogo morre antes ainda de nascer. Mas se estamos disponíveis a acolher o outro como “hóspede interior”, reconhecendo-lhe os traços presentes em nós, então desencadeia-se a centelha do diálogo autêntico: dá-se tempo ao outro, trocam-se palavras que se tornam dons recíprocos. O diálogo torna-se, assim, aquilo que a própria palavra “dià-lógos” diz: um entrecruzar de linguagens, de significados, de culturas. As perguntas do outro tornam-se as minhas, as suas dúvidas sacodem as minhas certezas, as suas convicções interpelam as minhas. Então descobriremos que no diálogo conseguimos chegar a pensamentos nunca antes pensados, com a fascinante perceção de os sentir a um tempo inauditos e, no entanto, familiares a nós mesmos, fazendo a experiência de sermos há muito habitados por realidades que estávamos convencidos de ignorar. No diálogo, o outro faz-se revelação de um dom que vem de outro lugar e depois vai para outro lugar. Torna-nos possível a descoberta inédita da nossa própria existência. Com palavras e gestos faz aflorar a interioridade que está em nós, e faz-nos o grande dom de nos revelarmos a nós próprios de um modo novo. (Enzo Bianchi In Monastero di Bose Trad. / edição: Rui Jorge Martins)
O mal não entra pela porta

Olhando a nossa vida com distanciamento, conseguimos encontrar pontos onde saímos do nosso caminho, nos afastámos do que nos faria felizes, pontos onde nos perdemos, porque perdemos tempo, desperdiçámos oportunidades, destruímos pedaços da nossa vida. Andamos com espinhos cravados na carne, tornamo-nos duros, amargos e insuportáveis. Doem, mas preferimos não os enfrentar. Por medo. Medo. O que acontecerá para que isto seja tão frequente em tantas vidas? O mal existe e não é apenas um vazio ou a ausência do bem. Busca o desvio, a divisão e aniquilação, por esta ordem. Quando o amor não é forte, eis que o mal nos entra na vida pelas fissuras, sempre sob a falsa aparência do bem. Quanto pior é o mal, mais despercebido passa. Quando se nota já está resistente e é preciso arrancá-lo pela raiz. A confiança concedida uma vez é razão de atenção para sempre. Há pessoas que, de tão centradas em si próprias, se fazem agentes do mal, que lhes promete muito, mas que nada do que lhes possa dar as fará felizes. O mal não dá, apenas retira. Seduz para dominar. Os escravos nunca são felizes, menos ainda os que são escravos do mal. O mal é teimoso até ao limite. Vence, muitas vezes, pelo cansaço. Uma das armas mais fortes contra o mal é alguém não se fechar em si mesmo e partilhar com outros as causas dos seus desesperos e angústias. Confessar liberta. De um mal deriva sempre outro. E é assim que se agiganta! Não são os grandes infortúnios que causam as maiores maldades. São os pequenos grãos de areia que se vão acumulando no dia a dia e que acabam por triturar os nossos sonhos, em silêncio. Só o tempo e o silêncio permitem ver o mal e compreender por onde anda na nossa vida. Importa demorarmo-nos a procurar em nós os males que nos tentam e desviam. Uma boa pista é que as maldades que, com mais facilidade, conseguimos identificar nos outros, são as que temos ou já tivemos em nós. Só quando percebemos o mal em nós é que podemos ser melhores do que nunca! Emenda-te e perdoa-te. O desamor é o paraíso do mal. (José Luís Nunes Martins)
Porta

Deus é uma ideia ou sentimento? Muitos colocam-se esta questão, mas existem aqueles que pensam em Deus como pessoa. Que diferença faz? Como pessoa, será a experiência que temos com Deus que leva a nossa união com Ele muito além de qualquer definição teológica. Daí que a melhor palavra após uma experiência profunda com Deus seja – ”Uau…” Pelo facto de ser uma experiência de/com Deus, está para além do tempo e do espaço, ainda que a façamos no nosso tempo e num lugar. É por isso que chamamos a essa experiência de transcendente. Uma experiência que nos dá uma dimensão mais profunda da vida. Mas, a que tipo de experiência nos referimos quando envolve Deus? Se te perguntasse que experiência de Deus fizeste, muito provavelmente, usarias termos abstractos. Mas se te perguntasse que experiência espiritual fizeste, responderias com termos sentimentais. Isto porque não é uníssono o conceito de Deus presente na mente de cada um de nós, enquanto que todos, de um modo ou outro, associamos as experiências espirituais a algo sensível, e todos partilhamos, de um modo geral, o mesmo tipo de sentimentos, independentemente de serem positivos ou negativos. O que o médico Andrew Newberg observou nos diversos estudos que fez, foi que a experiência espiritual de uma pessoa, quando forte e transformativa, envolve tanto Deus como ideia, ou como sentimento. A razão é que, qualquer experiência espiritual, independentemente do seu tipo, transforma o nosso sentido da realidade e o relacionamento que temos com o mundo. Aumenta o sentido de unidade presente em todas as coisas e dos relacionamentos entre si. Mas se existem conceitos e sentimentos diferentes, como podemos estar seguros de que, o real para nós, é o mesmo real para o outro? Se fizermos experiências espirituais diferentes não chegaremos a visões da realidade diferentes? Como é isso possível se Deus, por definição, é um só? Ou será múltiplo, como acontece em muitas culturas? Não é a minha crença ou descrença que define o que é, e não é, a realidade. A Realidade é o que experimentamos a cada instante, mesmo sem a compreender totalmente. A Realidade é uma experiência de vida e Deus, por definição, o fundamento dessa experiência. Por isso, podem-me perguntar sobre Deus e a minha resposta expressa a ideia imperfeita que tenho d’Ele. Podem-me perguntar sobre a experiência espiritual e a minha resposta estará repleta de sentimentos. Mas quando eu e tu nos dirigimos a Deus com a Um só, a minha voz, pensamento e sentimento são únicos, dirigem-se a alguém, não a algo, e isso faz toda a diferença. Deus é a Pessoa mais misteriosa que tenho conhecimento. E só no relacionamento profundo com Ele consigo experimentar esse Mistério. Acontece que no amor recíproco com quem está ao meu lado, Ele revela um pouco de Si mesmo em cada pessoa e, nesse sentido, ao aprofundar o relacionamento com o dom que cada pessoa é para nós, acabamos, também, por aprofundar o relacionamento com Deus. Afinal, o outro não é um obstáculo ao meu relacionamento com Deus, mas a porta aberta para essa possibilidade, se assim quiser. Olha para a próxima pessoa com quem te cruzares e pergunta-te – ”o que dirá Deus sobre Si mesmo quando a amar?” (© iMissio, 2020.)