Um erro é sempre um erro?

Um erro é quase sempre um erro. No entanto, adquire ainda mais esse estatuto quando, de forma antecipada, o reconhecemos como tal e, ainda assim, reunimos forças para o cometer. Há diversos tipos de erro. Os mais pequeninos, ou mais leves, que não deixam marca em quem os pratica e que se esquecem com relativa facilidade. Há, ainda, os erros desculpáveis; que deixam marca, mas que se podem compreender e aceitar. Há, também, os erros graves. Desta categoria fazem parte os que mais nos magoam e, de alguma forma, nos alteram. Usamos, muitas vezes, a palavra erro no nosso discurso sem pensar muito sobre ela ou sobre o peso que pode carregar. Ninguém gosta de estar errado. De errar. De falhar. De fazer diferente do que era suposto. No entanto, os erros são professores extraordinários. Sem erros, não aprendemos. Sem fazer coisas mal feitas, nunca seremos capazes de as distinguir das coisas bem feitas. É o erro que nos ensina a ser melhores. É através das falhas que podemos ver o caminho de uma forma diferente. Numa outra perspetiva. Quem acha que está sempre certo, normalmente está errado. Quem julga que não comete erros está, nesse mesmo momento, a cometer um. Não é por acaso que as pessoas apregoam que “errar é humano”. Errar faz parte do que somos e do que havemos de ser, também. Até julgo que fará algum sentido dizer que são os erros que nos tornam humanos. Que não nos falte, depois, a humildade para reconhecer o que podemos ser depois dos erros e, mais que tudo, para além deles. Que não nos falte, também, a frieza de admitir a quantidade de erros de que vamos sendo feitos. (© iMissio, 2019)

Reino

A Igreja encerra o ano litúrgico com a Festa de Cristo Rei. A já longa história da Igreja é rica em episódios ilustrativos de momentos gloriosos e outros tantos lamentáveis, de épocas de fervor e unidade, contrastando com outras tantas de conflituosa divisão e discórdia, de fases de expansão missionária e de outras de notável retração, de “encolhimento” motivado tantas vezes pelo espírito comodista, em lugares tradicionalmente cristãos, como no rico mundo ocidental. A Igreja, manifestação imperfeita do Reino de Deus, aclama ciclicamente Cristo como Rei e Salvador. Para nós causa de alegria, o rei-servo continua a ser proposto a todos os homens como Aquele que deve ser a regra do agir para uma vida plena, para uma existência pacifica e feliz. A Igreja é chamada a anunciá-Lo com a mesma audácia e sabedoria dos primeiros discípulos, com o encanto de quem fala de um grande amor, mas também com a humildade e o desconcerto que advém da consciência de algumas infidelidades a tão grande Rei. A Igreja vive para servi-lo em especial através de gestos e palavras em prol dos necessitados e feridos deste mundo. Esta missão é de todos os batizados. O reconhecimento de Cristo como Rei encarnado nas situações mais vulneráveis desafia-nos a ir mais longe, a procurá-Lo em lugares periféricos, como por baixo de viadutos ou encolhidos no chão do frontispício de um prédio, dentro de uma tenda, num recanto de um jardim público ou num banco de rua. Ele é um Rei que continua crucificado perante o olhar indiferente e distante de uma multidão. Do meu olhar… Recentemente a Igreja portuguesa perdeu uma das protagonistas da luta pela justiça social e pela paz. A economista Manuela Silva, antiga presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), propunha uma atualização da oração de S. Francisco à luz das problemáticas do novo século. «Onde haja exclusão que eu leve inclusão; onde haja competitividade agressiva que eu leve cooperação; onde haja desemprego que eu leve ocupação útil e remunerada; onde haja isolamento e solidão que eu leve uma presença amiga; onde haja injustiça nas relações de trabalho que eu leve a sua reparação; onde haja focos de guerra e de violência que eu leve a concórdia e um gesto de paz». Esta poderia ser uma magna carta para aqueles que continuam hoje a aclamar Jesus como seu Rei. (Pe Nélio Pita)

Como é possível orar sempre?

Disse depois uma parábola sobre a necessidade de orar sempre, sem jamais cessar (cf. Lucas 18.1-8). Estas palavras, sempre e jamais, infinitas e definitivas, parecem uma missão impossível. E no entanto há quem consiga: «No fim da sua vida, o frade Francisco já não orava, tornara-se oração» (Tomás de Celano, sobre o santo de Assis). Mas como é possível trabalhar, encontrar, estudar, comer, dormir, e ao mesmo tempo orar? Temos de entender: orar não significa dizer orações; orar sempre não quer dizer repetir fórmulas sem nunca cessar. O próprio Jesus advertiu-nos: «Quando orardes, não multipliqueis palavras, o Pai sabe…» (Mateus 6,7). Um mestre espiritual dos monges antigos, Evágrio o Pôntico, assegura-nos: «Não vos comprazais no número de salmos que recitastes: isso lança um véu sobre o teu coração. Vale mais uma só palavra na intimidade, que mil estando longe». Intimidade: orar, por vezes, é apenas sentir uma voz misteriosa que nos sussurra ao ouvido: Eu amo-te, Eu amo-te, Eu amo-te. E tentar responder. Orar é como querer bem, há sempre tempo para querer bem: se amas alguém, ama-lo dia e noite, sem nunca cessar. Basta apenas que seja evocado o nome e o rosto, e de ti alguma coisa se põe em viagem rumo a essa pessoa. Assim é com Deus: pensas nele, chama-lo, e de ti algo se põe em viagem na direção do eterno: «O desejo ora sempre, mesmo se a língua emudece. Se tu desejares sempre, oras sempre» (Santo Agostinho). O teu desejo de oração é já oração. A mulher grávida, mesmo se não pensa continuamente n a criatura que vive nela, torna-se cada vez mais mãe a cada batimento do coração. O Evangelho conduz-nos depois à escola de oração de uma viúva, uma bela figura de mulher, forte e digna, anónima e inesquecível, indómita perante o abuso. Havia um juíz corrupto. E uma viúva dirigia-se diariamente a ele, e pedia-lhe: faz-me justiça contra o meu adversário! Uma mulher que não se rende revela-nos que a oração é um “não” gritado ao “é assim a vida”, é o primeiro choro de uma história recém-nascida: a oração muda o mundo, mudando-nos o coração. Aqui Deus não é representado pelo juiz da parábola, encontramo-lo antes na pobre viúva, que é carne de Deus em que grita a fome de justiça. Porquê orar? É como perguntar: porquê respirar? Para viver! No fim de contas, orar é fácil como respirar. «Respirai sempre Cristo», última pérola do abade António aos seus monges, porque está próximo de nós. «Nele, com efeito, vivemos, nos movemos e existimos» (Atos 17,28). Por isso a oração é fácil como o respiro, simples e vital como respirar o próprio ar de Deus. Ermes Ronchi In Avvenire Trad.: Rui Jorge Martins Imagem: AntonioGuillem/Bigstock.com Publicado em 17.10.2019

“Uma grande esperança” – Texto inédito do Papa Francisco sobre “A nossa mãe terra”

Publicamos excertos de “Uma grande esperança”, ensaio inédito do papa Francisco que conclui o livro “Nostra madre Terra. Una lettura cristiana della sfida dell’ambiente” (Nossa mãe Terra. Uma leitura cristã do desafio do ambiente), que será lançado a 24 de outubro pela Libreria Editrice Vaticana. A obra recolhe frases, textos, discursos e homilias do papa Francisco sobre o tema da proteção da criação e da promoção de uma vida digna para cada ser humano. O volume é introduzido pelo prefácio do patriarca ecuménico Bartolomeu, que sublinha o entendimento entre ortodoxos e católicos na salvaguarda, à luz da fé em Cristo, do dom da criação e da vida humana. Uma grande esperança Papa Francisco In “Nostra madre Terra” A Sagrada Escritura ensina-nos que Deus criou o mundo. A liturgia da Igreja revela-nos, depois, que Ele o fez «para efundir o seu amor» (Missal Romano, Prefácio da Oração Eucarística IV) sobre tudo aquilo que do nada vinha à vida. Tudo quanto existe traz, portanto, consigo um sinal, um traço, uma memória – ousarei quase dizer genética – que remete para o Pai. Isto significa que, em tudo quanto existe, o Pai dá-se, e portanto podemo-lo encontrar, podemos ter uma experiência do seu amor, percecionar uma centelha da sua paternidade. Não existe nada tão pequeno ou pobre que não traga em si esta origem, ou que a possa perder totalmente. Podemos assim tomar emprestadas as palavras do autor do Livro da Sabedoria, que se dirige a Deus, dizendo: «Tu, de facto, amas todas as coisas que existem, e não experimentas desgosto por nenhuma das coisas que criastes; se tivesses odiado alguma coisa, não a terias sequer formado. Como poderia subsistir uma coisa se Tu não a tivesses querido? Poderia conservar-se aquilo que por ti não foi chamado à existência? Tu és indulgente com todas as coisas, porque são tuas, Senhor, amante da Vida» (Sabedoria 11, 24-26). Existe, por isso, uma ligação contínua, radical, entre tudo aquilo que existe: o mundo provém de um Deus amor que no mundo se doa, e nos chama a partilhar este seu modo de existência. A criação, todavia, não é, como muitas vezes se pensa, simplesmente natureza e ambiente. Nós somos criaturas, mesmo o tempo que passa é criatura. Isto quer dizer que não existe nenhuma situação, nenhuma provação ou crise, nenhuma alegria ou sucesso, em que não se possa fazer experiência do Senhor, dar um passo na sua direção para crescer na amizade com Ele, e para poder por nossa vez amar, enquanto loucamente amados. Tudo o que existe, existe portanto para poder “viver” como Deus, isto é, como dom, como amor acolhido e entregue. Mas a criação só pode viver isto através do ser humano. Só no ser humano, microcosmo que condensa em si o universo, mas que vive do sopro que o Deus pessoal insuflou diretamente no seu rosto, o mundo pode corresponder à sua secreta sacramentalidade, ou seja, ser visto como dom. Um dom é sempre uma realidade pessoal: de alguma forma contém quem o deu, e pede àquele a quem é oferecido que o veja assim, como uma realidade transparente do rosto do doador, um dom feito para conhecer quem se ama e fazer da vida do outro uma comunhão consigo. É tarefa do ser humano decifrar de maneira livre e criadora a revelação deste dom. E é igualmente tarefa do ser humano tomar o mundo na sua comunhão com Deus. A criação é, por isso, um lugar em que somos convidados a descobrir uma presença. Mas isto significa que é a capacidade de comunhão do ser humano a condicionar o estado da criação. Esta é a nossa grande responsabilidade. Quando não conseguimos decifrar a presença que habita as coisas, tudo se torna banal e opaco, deixa de ser um meio de comunhão, e torna-se uma ocasião de tentação e de tropeço. Tudo isto começa no coração de cada um de nós, e difunde-se através de pensamentos, intenções, comportamentos, hábitos, seja a nível singular seja de grupos sociais. Para fazer parte desta cadeia que banaliza ou deturpa o dom da criação não é preciso ser-se criminoso: é “suficiente” não reconhecer o dom que o outro – qualquer outro – é, do familiar ao vizinho da casa, do colega de trabalho ao pobre que encontro na rua, do amigo ao migrante que procura trabalho ou um apartamento onde viver… Isto que acontece no coração do ser humano tem um significado universal e imprime-se no mundo. É portanto o destino do ser humano a determinar o destino do universo. Como na Eucaristia o pão e o vinho se tornam Cristo porque são banhados pelo Espírito, o amor pessoal do Pai, assim toda a criação (pessoas, coisas, animais, plantas, tempo e espaço) torna-se uma palavra pessoal de Deus quando é usada por amor, para o bem do outro, sobretudo de quem precisa Precisamente porque tudo está ligado (cf. “Laudato si’” 42; 56) no bem, no amor, precisamente por isso toda a ausência de amor tem repercussões sobre tudo. A crise ecológica que estamos a viver é, assim, antes de tudo um dos efeitos deste olhar doente sobre nós, sobre os outros, sobre o mundo, sobre o tempo que passa; um olhar doente que não nos faz percecionar tudo como um dom oferecido para nos descobrirmos amados. É este amor autêntico, que por vezes chega até nós de maneira inimaginável e inesperada, que nos pede para revermos os nossos estilos de vida, os nossos critérios de juízo, os valores sobre os quais fundamos as nossas opções. Com efeito, é hoje sabido que envenenamento, alterações climáticas, desertificação, migrações ambientais, consumo insustentável dos recursos do planeta, acidificação dos oceanos, redução da biodiversidade, são aspetos inseparáveis da desigualdade social (cf. “Evangelii gaudium” 52-53; 59-60; 202): da crescente concentração do poder e da riqueza nas mãos de pouquíssimos e das denominadas sociedades do bem-estar, das insanas despesas militares, da cultura do descarte e de uma falta de consideração do mundo do ponto de vista das periferias, da ausência de salvaguarda

Precisamos uns dos outros

Somos seres criados para a comunhão. A nossa interdependência é maior do que aquilo que pensamos ou mesmo que desejamos. Somos seres cuja vida depende de alguém que decidiu carregar-nos nove meses, e outros muitos mais decidiu, no amor, alimentar-nos, vestir-nos, dar-nos os medicamentos necessários, junto com o afecto que nos tornou o que somos hoje. O nosso Povo diz que “uma mão dá o pão e outra a criação”. Assim é. Não se trata sequer de ficarmos dependentes a vida toda em dimensões da nossa existência, mas da necessidade de criarmos consciência de que a auto-suficiência fecha-nos em nós mesmos, leva-nos a criar mofo interior e de que esta só nos isola e cria imagens falsas de nós próprios. É para a comunhão que fomos criados. O trigo que é pousado sobre a nossa mesa foi algures semeado, colhido, triturado, misturado com água e sal, levedado, colocado no forno… e chegou até nós. Quantas mãos tocaram uns simples grãos de trigo até que ele se fizesse vida em nós! Uma mão precisa da outra para lavar o rosto, pois uma sozinha torna-se num esforço medonho; uma perna a suportar o peso do corpo cansa-se mais rápido do que se forem as duas a valer-se em conjunto. A comunhão é o ponto de partida e o ponto de chegada da nossa existência. Um ser não anula o outro mas antes o pode complementar. Não sabemos tudo e o que sabemos é tão pouco; o mesmo acontecimento, quando observado por diferentes pessoas, pode oferecer-nos uma leitura mais ampla da realidade; a contemplação do mesmo pôr-do-sol oferece perspectivas diferentes da grandeza da criação. Precisamos uns dos outros. E isso traz-nos a responsabilidade de criarmos disponibilidade em nós e a certeza de que a vida vale mais sendo em comunhão! E isso só pode ser bom. (© iMissio)