O lugar do outro não me fala!

O lugar do outro diz-me pouco. A história que os outros me contam sobre si próprios não faz estremecer as minhas paredes de dentro. Guardo-me de sentir compaixão para não me incomodar, para não perturbar a não verdade dos meus dias. Demito-me de querer sentir o que o outro sente para não me atormentar. Para (não) compreender que nem tudo o que se passa à minha volta converge a meu favor ou me diz respeito. Não somos dos outros. Giramos em torno de nós próprios inebriados por uma luz que julgamos ter. Que bonita é a minha imagem e o meu reflexo quando espelhados à sombra da escuridão que os outros são. Não nos damos conta do quanto nos separámos. Uns podem afirmar, assertivamente, que a falta de empatia aumentou com a chegada do Covid. Outros dizem que foi a tecnologia que nos desumanizou, que nos fez robots perante os sentimentos e as emoções ou a falta deles. Na verdade, julgo que os motivos que nos trouxeram até aqui são, seguramente, irrelevantes. O que contará é ousar fazer diferente a partir do que vemos (e temos) agora. Se sabemos que nos separámos, como voltaremos a aproximar-nos? Se sabemos que não estamos juntos, como será possível voltarmos a estar? Claro que não poderemos viver só para os que nos rodeiam nem ter a ilusão de um altruísmo inconcebível. Mas podemos estar mais atentos. Podemos ouvir sem julgar. Podemos dar sem cobrar. Podemos tentar salvar mais vezes o que parece irremediável. Podemos olhar nos olhos mais vezes. Segurar na mão de quem está perto como quem sabe que, às vezes, um dia melhor pode depender disso. Temos corações embrionários no que respeita ao cuidar dos outros. Somos projetos de pessoas no que respeita ao argumentar ou discutir sem magoar nem ferir. Temos tanto para aprender (sobre tudo). Mas a verdadeira pergunta é esta: Estaremos dispostos a isso? (© iMissio, 2021)
Valorizamos o que realmente importa?

Ultimamente tenho-me debruçado bastante sobre esta questão: valorizamos o que realmente importa? Num mundo virado do avesso, será que os valores se inverteram também? Se pensarmos nos processos de recrutamento que enfrentamos quando procuramos um novo emprego, deparamo-nos com situações que nos fazem questionar. Será que uma pessoa que está agora a ingressar no mundo do trabalho tem menos valor do que aquela que já está no ativo há alguns anos? Será que as habilitações literárias que inicialmente são escassas se devem tornar excessivas com o decorrer do caminho? Será que as médias são mais importantes do que a vocação? Estas são algumas das questões que me fazem pensar quando vejo processos de recrutamento com os valores alterados ou jovens que emigram porque cá são menos e lá fora são mais. E pergunto ainda se seremos nós, os que concorrem, que somos insuficientemente bons, ou serão os recrutadores que valorizam o menos importante, deixando o mais importante por avaliar? Se pensar em Jesus, o recrutamento dele era muito simples. Escolhia aqueles que tinham sede de mais, aqueles que eram descartados por todos os outros e aqueles que tinham a vocação, mas não as médias. Jesus escolhia a personalidade, os valores. Escolhia ver para além do que todos veem. Jesus escolhia a pessoa e não os seus canudos. Jesus valorizava as pessoas e mostrava-lhes que os aspetos mais importantes dos seus currículos eram a sua personalidade e os seus dons. Será que, na nossa vida, recrutamos as pessoas erradas para que nela permaneçam? Deixaremos de lado pessoas recheadas de cor, para caminhar com quem apaga a nossa própria cor? Está na hora de nos descobrirmos, para depois percebermos de verdade quem é que devemos recrutar para o nosso caminho. Está na hora de valorizarmos o que realmente importa: o amor, os dons e a alegria de sermos testemunhas da fé. Porque quando colocamos amor em tudo o que fazemos, o resultado é sempre bom! (© iMissio, 2021)
És capaz de perguntar a Deus?

As questões que fazemos definem-nos mais do que as respostas que damos. Quantas vezes temos a coragem e a sensatez de fazer as perguntas certas e importantes? A nós mesmos, aos outros e a Deus? Compreender uma pergunta em toda a sua profundidade é já ficar a saber algo essencial. Talvez tão ou mais útil do que a resposta. Saber o que perguntar é já uma sabedoria. Hoje não temos tempo para nada. Ou melhor, só temos tempo para as mil coisas do dia a dia, para as superficialidades importantes que nos consomem anos e anos da existência. É preciso parar e ser capaz de colocar muitas coisas em questão, mais ainda se a nossa vida não parece estar a fazer grande sentido. Talvez fosse bom reservar algum tempo para uma meditação mais calma sobre os pilares da nossa vida, os eixos que nos sustentam, o sentido do que nos move. Não é bom que vivamos sem consciência da realidade que nos envolve, sem sequer nos questionarmos, como se fossemos sábios para quem tudo fosse claro. Quase todos somos especialistas em ter respostas para tudo, mesmo para o que não sabemos. Perguntar não é uma demonstração de fraqueza ou ignorância. Na verdade, é ter a humildade que permite bater à porta da verdade. Conhece-se alguém muito mais pelas suas perguntas do que pelas suas respostas. Saibamos encontrar espaço e tempo para perguntar. Para aprofundar questões e buscar a verdade. Experimentemos fazer perguntas a Deus. É um excelente ponto de partida… desde que estejamos preparados para moderar a nossa pressa e, mais importante ainda, para que as respostas não sejam as mais confortáveis. As perguntas que fazes a Deus já revelam muito sobre ti. Estuda-te. Mas Deus responde? Sim. Sem pressas e supondo que somos inteligentes ao ponto de não precisarmos que nos grite aos ouvidos ou que nos escreva uma carta. Saibamos nós fazer as perguntas certas e esperar até que a verdade se revele. Nessa altura, tenhamos a coragem de a reconhecer. O mais difícil não é admirar a verdade, mas mudar a nossa vida em função dela. (José Luís Nunes Martins)
Amor, o vento de Deus

No dia em que já nada te espante, morreste, ainda que o teu corpo possa sobreviver muitos anos. A criação é um processo subtil pelo qual o pequeno se faz grande, através de uma espécie de sopro que dá vida e a sustenta. Mais ainda são as maravilhas em todas as outras coisas que, sem terem vida, embelezam e engrandecem o mundo em que vivemos. Os mares, as montanhas e os vales, os desertos e tudo quanto há de natural debaixo do céu tem uma beleza capaz de embalar um coração atormentado, assim este consiga admirar a bondade do mundo. Repara no vento que não consegues ver. Admira como apenas te é possível ver o que ele faz. Consegues ver uma árvore ou um animal a crescer? Mas crescem. Com calma, paciência e determinação. Como se animados por um sopro que os enche, até deles brotar mais vida. Na criação, eis que as criaturas são criadoras! Só cria quem se dá. Quem faz mundo a partir do que tem em si. Criar é amar e esse é o caminho para a plenitude que não cabe em nós, mas que depende de nós para se cumprir. Está atento ao que te rodeia, há milagres a acontecer à tua volta. Admira os mistérios que, mesmo sem compreenderes como acontecem, te ensinam a dares-te ao mundo, fazê-lo mais belo. Não esperes pelo vento de Deus. À tua força e vontade de amar junta-se um sopro vindo do céu, que não se deixa ver ou sentir no momento, mas que é evidente quando, pouco depois de teres cumprido a missão, olhares para o que se passou! Quem ama nunca adormece, sonha ou acorda sozinho. Não porque Deus esteja no seu coração, mas porque vive e habita no coração de Deus. (José Luís Nunes Martins)
A aprendizagem da alegria
Séneca dedicou os últimos anos da sua vida a construir um dos mais fascinantes epistolários latinos. Discute-se muito se o seu correspondente, Lucílio, existisse de facto ou fosse simplesmente uma entidade ficcional. Há, porém, um candidato plausível a ocupar o lugar: Lucílio, o jovem, um modesto escritor e político que exercia nesses anos (62-65 d.C.) o cargo de procurador imperial na província da Sicília. As cartas de Séneca têm tudo o que nos fascina nas cartas: a vivacidade visual do quotidiano, as marcações lentas e íntimas do tempo, as confidências, os sentimentos entrevistos, a espontaneidade, o humor, as observações não transcuradas. De facto, as cartas são uma incrível forma de escrita tridimensional: dão a ver (ou criam a ilusão de dar a ver) em direto a existência tal como ela é. Mas, a somar a essas características, as de Séneca são também preciosos tratados filosóficos em pequeno formato. Além de amigo, o filósofo sentia a responsabilidade de guiar através da reflexão o aperfeiçoamento do seu interlocutor. Assim, cada carta oferecia a possibilidade de abordar temas e de oferecer pontos de meditação onde o conhecimento da verdade se ampliava. E de fazê-lo — facto deveras admirável neste clássico de obrigatória leitura — como um diálogo escorreito entre amigos, partindo tantas vezes da experiência mais comezinha da vida, mas com a capacidade de reconduzi-la ao âmago do seu sentido. A carta 23 é dedicada à verdadeira alegria, aquela que não se confunde com a satisfação imediatista ou com os prazeres prêt-à-porter que apenas armadilham e contraem o campo de possibilidade do desejo. A verdadeira alegria é a que nos faz trilhar com decisão um itinerário interior do qual resulta um crescimento e uma maior consciência de nós próprios. Há formas de contentamento que alegram momentaneamente o rosto, mas aprofundam a divisão e o vazio da alma. Séneca insiste: “É o espírito que se deve alegrar, elevando-se com confiança sobre os acontecimentos, quaisquer que eles sejam.” Para isso temos, porém, de acolher a exortação que ele faz a Lucílio: disce gaudere, aprende a alegrar-te. Esta necessidade de uma aprendizagem, não raro árdua, requerida para a experiência efetiva da alegria é um dos pontos centrais da sua mensagem. A este, juntaria outros três. O primeiro deles é a descoberta de que a alegria deve ser encontrada em nós (“que a alegria te nasça em casa”), não no que nos acontece. Contudo como acontece com os metais — os de escasso valor encontram-se à superfície, enquanto que os preciosos se escondem nas profundezas da terra —, a verdadeira alegria é aquela que parte do fundamento e se expande a partir de dentro. O segundo ponto leva-nos a compreender que a verdadeira alegria é a alegria do bem que se exprime, segundo Séneca, por uma reta consciência, uma honestidade de intenções e uma concentração no essencial, como “quem percorre um único caminho”. O último ponto é a vigilância e o empenho necessários para levar a bom termo a aprendizagem da alegria: são poucos aqueles que conduzem realmente a própria vida; a maior parte deixa-se levar pelo curso das coisas. O discurso da alegria serve assim a Séneca para um apelo à responsabilidade de vivermos a fundo a vida. Não aconteça que partamos sem ter percebido a oportunidade que representou esta passagem ou, pior ainda, que desistamos “de viver ainda antes de ter começado”. E Séneca despede-se dizendo, vale, adeus. b (Uma excelente edição portuguesa de “Cartas a Lucílio” é a das edições Gulbenkian, tradução de J. A. Segurado e Campos) (Tolentino Mendonça in Jornal Expresso)