Recomendamos: «Do lado de cá da meia-noite. Atravessar a crise.»

Dom António Couto não desilude. Para quem se interessa pelo estudo da Palavra de Deus, recomendo o bispo de Lamego que é um fervoroso biblista. Ler este livro, recordo de novo, as suas aulas na Universidade Católica de Lisboa no inicio da década de 90 do século passado. António José da Rocha Couto, mais conhecido entre os alunos pelos apelidos, deslocava-se do norte para em dois dias lecionar a cadeira de Pentateuco. Aulas sempre cheias para ouvir o entusiasmado professor explicar o Êxodo bíblico. Aprendi com o Rocha Couto a riscar, sublinhar, escrever notas laterais, ligações entre o Antigo e o Novo Testamentos… Ou seja, aprendi que a Bíblia não é um livro para se ter numa estante, mas para ser trabalhado, estudado e meditado. Esta nova publicação é o resultado de trabalho idêntico. Trabalho de quem não se cansa de procurar o que a Palavra nos diz hoje e agora, no momento que vivemos. São apresentados seis ensaios. O autor faz-nos ver em todos eles que a dor e o sofrimento que atravessamos, tal como nas narrativas bíblicas, não são o fim mas o princípio de um novo ser. Onde tudo parece perder-se surge Deus que tudo reconstrói. A Bíblia descreve-nos a atuação de Deus na História. Um Deus que nos amou primeiro. Um Deus que vem ao encontro do ser humano mesmo quando esse O esquece. Um Deus que renova a aliança e, como por consequência, a Esperança! As principais fontes de D. António Couto, são naturalmente bíblicas, mas o diálogo com o pensamento e a cultura atuais é uma constante. Não tenho dúvidas que esta obra nos ajuda a atravessar a crise. Boa leitura. (sercretariado Nacional da astoral

Até quando continuaremos a comover-nos e a esquecer?

A fotografia do dia mostrava um bebé salvo das águas, sobrevivente não se sabe como ao enésimo massacre dos inocentes que se está a consumar no Mediterrâneo diante dos olhos de todos. Desta vez aconteceu em Ceuta, o enclave espanhol em Marrocos, onde milhares de migrantes estão há dias a procurar atravessar a fronteira, inclusive a nado, e entre estes, como sempre, muitas famílias, com crianças crescidas ou de poucos meses. Desta vez o epílogo narrado pela imagem não foi trágico, mas por puro acaso: um militar da Guardia Civil retira da água um recém-nascido e salva-o. A touca e a roupinha são precisamente como aqueles que revestem as crianças nos berços das nossas unidades de obstetrícia, com poucos dias. Ao ver a imagem, pergunto-me o que tem a ver aquela criança, que podia ser nossa filha, com o salvador, o mar, a fuga, os migrantes. No entanto não é uma fotomontagem. É, antes, a enésima imagem dilacerante, que comove e toca os corações de quem é pai e mãe, homem ou mulher. Porque tudo aquilo que sacode faz subir um nó à garganta, provoca o pranto, talvez instigue a raiva. E é bom que assim seja. Mas a emoção já não basta. Já não basta o momentâneo apelo ao instinto materno e paterno de proteção em relação aos pequeninos em perigo. Já não chega salvar tantas vidas. Quantas outras imagens semelhantes, espalhadas pela televisão e redes sociais, humedeceram os nossos olhos? Já esquecemos o pequeno Alan Kurdi, morto, nos braços do militar turco, que um destino menos afortunado despejou sobre uma praia tão longe da sua casa? Já esquecemos o pequeno Yoseph afogado no enésimo naufrágio no Mediterrâneo, em novembro passado, antes que chegassem os socorristas? Já esquecemos os gritos desesperados da mãe a bordo da chalupa? Aquelas lancinantes palavras «I loose my baby, I loose my baby»? Já não nos recordamos da série infinita de vídeos, fotografias de crianças salvas a tempo ou impelidas já mortas pelas ondas do mar? Necrologias da nossa vergonha? Já nos habituámos a ver? Talvez ainda não. A “pietas” das nossas consciências é mais difícil de morrer do que aqueles náufragos em fuga do mal. Mas só a piedade, só a onda da emoção não chega. Porque é efémera, passageira, como são as fotografias na internet e as notícias de «última hora» das televisões, que logo depois dão lugar a outras. Quase diríamos que não podemos continuar a permitir-nos essa “pietas”, e que por si só é quase indecente, porque como o sentimento emerge e irrompe com urgência, somos levados a pensar que tudo isto é pura “emergência”, mera contingência, que se pode enfrentar apenas quando a emoção voltar a aflorar. Não basta a “pietas” sem a “dignitas”, diriam os padres latinos. «E é uma Europa sem dignidade aquela que faz morrer as pessoas no mar», disse justamente o presidente do município de Lampedusa após a enésima vida perdida. É preciso verdadeiramente algo mais que as lágrimas. Algo que tenha minimamente a ver com a consciência lúcida de que a solução para o “fenómeno do século” exige inteligência, organização, respeito pelos direitos humanos, solidariedade entre povos. Numa palavra: ação política e paixão pelo ser humano. Antes que a próxima fotografia nos consuma o enésimo lenço de papel. (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)

A humanidade precisa que o Espírito a sacuda

Quando vier o Espírito, orientar-vos-á para toda a verdade (cf. João 15,26-27; 16,12-15). É a humildade de Jesus, que não pretende dizer tudo, de ter a última palavra sobre tudo, mas fala da nossa história com Deus com verbos conjugados no futuro: o Espírito virá, anunciará, guiará, falará. Um sentido de vitalidade, de energia, de espaços abertos! O Espírito como uma corrente que arrasta a História para o futuro, abre veredas, faz avançar. Rezar-lhe é como assomar à varanda do futuro. Que é a terra fértil e por cultivar da esperança. O Espírito provoca como um curto-circuito na História e no tempo: restitui-nos ao coração, acende em nós, como uma pederneira que cria centelhas, a beleza de então, de gestos e palavras daqueles três anos de Galileia. Enamorados da beleza espiritual, tornamo-nos «buscadores verdadeiros de Deus, que tropeçam numa estrela e, tentando caminhos novos, se perdem na poeira mágica do deserto» (D.M. Montagna). Somos como peregrinos sem estrada, mas tenazmente a caminho (João da Cruz), ou no meio de um mar plano, sobre uma casca de noz, onde tudo é maior que nós. Nesse momento, é preciso saber a todo o custo/ fazer levantar uma vela/ sobre o vazio do mar (Julian Gracq). Uma vela, e o mar muda, já não é um vazio no qual nos perdemos ou afundamos; basta que se levante uma vela e nos deixemos investir pelo sopro vigoroso do Espírito (eu a vela, Deus o vento) para iniciar uma aventura apaixonante, esquecendo o vazio, seguindo uma rota. O que é o Espírito Santo? É Deus em liberdade. Que inventa, abre, sacode, faz coisas que não esperas. Que dá a Maria um filho fora-da-lei e a Isabel um filho profeta, e que em nós cumpre incansavelmente a mesma obra de então: torna-nos ventres do Espírito, que dão carne e sangue e história à Palavra. Deus em liberdade, um vento nómada, que leva pólenes aonde quer, leva primaveras e dispersa as neblinas, e a todos nos faz vento no seu Vento. Deus em liberdade, que não suporta estatísticas. Os estudiosos procuram recorrências e esquemas constantes; dizem: na Bíblia Deus age assim. Não acredites. Na vida e na Bíblia, Deus nunca segue esquemas. Precisamos do Espírito, dele precisa o nosso mundo estagnado, sem impulsos. Para esta Igreja que tem dificuldade em sonhar. O Espírito com os seus dons dá a cada cristão uma genialidade que lhe é própria. E a humanidade tem necessidade extrema de discípulos geniais. Precisamos que cada um acredite no seu dom, na sua unicidade, e assim possa manter elevada a vida com a inventiva, a coragem, a criatividade, que são dons do Espírito. Então nunca faltará o vento ao meu veleiro, ou àquela pequena vela que se agita alta no vazio do mar. (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)

A Igreja que Francisco sonha é mais inclusiva, intercultural e periférica

Numa época em que «os nacionalismos fechados e agressivos e o individualismo radical desagregam ou dividem o “nós”, tanto no mundo como dentro da Igreja», o papa Francisco sonha com um «futuro a cores», em que a Igreja seja «cada vez mais inclusiva» para com deslocados de outras confissões, de maneira a promover o diálogo ecuménico e inter-religioso, e que o mundo seja «enriquecido pela diversidade e pelas relações interculturais» e as fronteiras se transformem em «lugares privilegiados de encontro». Na sua mensagem para a 107.ª Jornada Mundial do Migrante e do Refugiado, que se assinala a 26 de setembro, o papa aponta caminhos aos «fiéis católicos» e a «todos os homens e mulheres da Terra» para esconjurar um risco que agrava a condição da humanidade já vergada pela pandemia, começando desde logo pelo título, “Rumo a um ‘nós’ cada vez maior”. Com efeito, «o “nós” querido por Deus está dilacerado e dividido, ferido e desfigurado», «e o preço mais alto é pago por aqueles que mais facilmente se podem tornar os “outros”: os estrangeiros, os migrantes, os marginalizados, que habitam as periferias existenciais». Ao retomar o moto declarado na emblemática celebração a que presidiu a 27 de março de 2020, ao anoitecer, diante e uma vazia praça de S. Pedro, «estamos todos na mesma barca», Francisco reiterou a convicção de que os católicos são chamados a comprometer-se «para que não existam mais muros que nos separam, nem existam mais os “outros”, mas só um “nós”, do tamanho da humanidade inteira». É também aos católicos que o papa pede para que o sejam sempre e mais:  «A catolicidade da Igreja, a sua universalidade é uma realidade que requer ser acolhida e vivida em cada época, conforme a vontade e a graça do Senhor que prometeu estar sempre connosco até ao fim dos tempos. O seu Espírito torna-nos capazes de abraçar a todos para se fazer comunhão na diversidade, harmonizando as diferenças sem nunca impor uma uniformidade que despersonaliza». A todos, em particular aos católicos que, em nome de nacionalismos e ideologias estranhas ao Evangelho, Francisco acentua: «No encontro com a diversidade dos estrangeiros, dos migrantes, dos refugiados e no diálogo intercultural que daí pode brotar, é-nos dada a oportunidade de crescer como Igreja, enriquecer-nos mutuamente. Com efeito, todo o batizado, onde quer que se encontre, é membro de pleno direito da comunidade eclesial local e membro da única Igreja, habitante na única casa, componente da única família». Como é que se pode passar das palavras aos atos? «Cada qual a partir da comunidade onde vive, a comprometer-se para que a Igreja se torne cada vez mais inclusiva, dando continuidade à missão que Jesus Cristo confiou aos apóstolos», o que significa «sair pelas estradas das periferias existenciais para cuidar de quem está ferido e procurar quem anda extraviado, sem preconceitos nem medo, sem proselitismo», nomeadamente «muitos migrantes e refugiados, deslocados e vítimas de tráfico humano, aos quais o Senhor deseja que seja manifestado o seu amor e anunciada a sua salvação». Depois de sublinhar as oportunidades para o diálogo ecuménico e inter-religioso «sincero e enriquecedor» que decorrem do acolhimento a migrantes e refugiados Francisco apela a «todos os homens e mulheres» para se envolverem num desafio de sempre, mas talvez nunca tão premente como nestes tempos: «Recomporem a família humana, a fim de construirmos em conjunto o nosso futuro de justiça e paz, tendo o cuidado de ninguém ficar excluído». «Para alcançar este ideal, devemos todos empenhar-nos por derrubar os muros que nos separam e construir pontes que favoreçam a cultura do encontro, cientes da profunda interconexão que existe entre nós. Nesta perspetiva, as migrações contemporâneas oferecem-nos a oportunidade de superar os nossos medos para nos deixarmos enriquecer pela diversidade do dom de cada um», reitera. É nas fronteiras físicas e existenciais que o “nós” de cada país e povo pode conseguir «o milagre de um “nós” cada vez maior», «que não faz distinção entre autóctones e estrangeiros, entre residentes e hóspedes», e que se traduz num «desenvolvimento mais sustentável, equilibrado e inclusivo». A mensagem termina com uma prece: «Pai santo e amado,/ o vosso Filho Jesus ensinou-nos/ que nos Céus se esparge uma grande alegria/ quando alguém que estava perdido/ é reencontrado,/ quando alguém que estava excluído, rejeitado ou descartado/ é reinserido no nosso nós,/ que assim se torna cada vez maior.// Pedimos-vos que concedais a todos os discípulos de Jesus/ e a todas as pessoas de boa vontade/ a graça de cumprirem a vossa vontade no mundo.// Abençoai todo o gesto de acolhimento e assistência/ que repõe a pessoa que estiver em exílio/ no nós da comunidade e da Igreja,/ para que a nossa terra possa tornar-se,/ tal como Vós a criastes,/ a Casa comum de todos os irmãos e irmãs. Ámen». (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)

Tolentino Mendonça pede “outras gramáticas” para o mundo pós-pandemia.

A “experiência de crise mais extrema” pode ser transformada “numa ocasião para relançar a vida, para restaurar a sua frágil arquitectura, para propor um novo começo”. A olhar já para um mundo pós-pandemia, o cardeal D. José Tolentino Mendonça, pareceu querer, esta quinta-feira, em Fátima, onde presidiu a mais uma celebração do 12 e 13 de Maio, esconjurar o fatalismo e “devolver a esperança a quantos se sentem cansados e oprimidos”. “O mundo fatigado por esta travessia pandémica que ainda dura, e que pede a cada um de nós vigilância e responsabilidade, não tem apenas fome e sede de normalidade: precisa de novas visões, outras gramáticas, precisa que arrisquemos ter sonhos”, anunciou, numa homilia dita perante um recinto limitado a 7500 pessoas, o que deixou muitos peregrinos de fora. “O verdadeiro desconfinamento é aquele que o amor opera em nós. O amor é o mais verdadeiro, o mais profético, o mais necessário desconfinamento”, acrescentou o bibliotecário do Vaticano, apontando ainda o amor como antídoto contra o vírus e, mais do que isso, como ingrediente fundamental de relações “que tocam os alicerces da vida”, por oposição às “relações pontuais, puramente epidérmicas, das relações de indiferença, de consumo ou de descarte.” Antes do cardeal, os peregrinos viram um vídeo do Papa Francisco, que lhes pediu que aproveitassem a sua presença no santuário para rezarem por si e por todas as vítimas directas e indirectas da pandemia. E foi já depois desta mensagem, saudada com um forte aplauso, que D. José Tolentino Mendonça sustentou que Jesus “transforma – e ensina a transformar – as crises em laboratórios de esperança”. “Numa hora de encruzilhada da história como esta que vivemos não podemos fazer coincidir o relançamento da esperança unicamente com o cuidado pela expressão material da vida”, alertou ainda o poeta. De seguida, reconhecendo que “é urgente garantir o pão e esse trabalho exigente de reconstrução económica”, D. José Tolentino lembrou que “as sociedades precisam também de um relançamento espiritual”. “As necessidades humanas são físicas (necessidade de pão, de protecção social, de habitação, de cuidados de saúde, mas são também morais e espirituais”, pregou, recuperando para a actualidade o pensamento da filósofa Simone Weil, quando esta se referiu, em 1943, à necessidade de um projecto espiritual capaz de fazer renascer a Europa da devastação provocada pela II Guerra Mundial. “A experiência da pandemia e a crise poliédrica e global que ela instaurou representam igualmente para a contemporaneidade um imenso desafio a renascer”, comparou, para considerar que “não basta voltarmos exactamente ao que éramos antes: é preciso que nos tornemos melhor”. “Este é chamado a ser também um momento de revisão crítica do caminho que realizámos até aqui, de fazer uma espécie de balanço interior que avalie os nossos estilos de vida, os modelos de desenvolvimento e a natureza das opções que nos têm conduzido”, sustentou, antes de concluir: “Estamos a tempo de transformar a crise em oportunidade e a calamidade em esperança.”. [© iMissio, 2021]