O que quero com o jejum e a abstinência?

Ainda jejuamos na Quaresma? A pergunta não é nova. Mas todos os anos sou questionado sobre a prática do jejum e da abstinência. Por brincadeira, costumo responder que é um desafio que me ponho sempre que me olho ao espelho e digo a mim mesmo: “Paulo, tens que perder peso!” Durante este tempo favorável, já escrevi sobre a necessidade da conversão para uma vida voltada para o essencial, sem máscaras; sobre o silêncio necessário para este regresso; sobre a peregrinação que é a condição necessária para ver o sentido da nossa vida; agora quero dissertar sobre estas exigências que a Igreja nos propõe. Jejum e abstinência não fazem qualquer sentido na vida cristã se forem um fim em si mesmo! Será muito similar àquele que se propõe fazer uma dieta sem, concomitantemente, levar uma alimentação regrada e saudável acompanhada por exercício físico. Percebe-se o porquê. Acaba a dieta, volta tudo ao normal ou ainda pior. Assim é com a disciplina quaresmal. Esta renúncia não é um fim em si mesma. mas orienta-se para a abertura do coração e da mente, para uma existência evangélica, na qual o Espírito possa inscrever, a nova vida salva em Jesus Cristo. É também o caminho para uma maior solidariedade e partilha com tantos irmãos que têm fome de pão e de paz. A renúncia começa justamente com a capacidade de escolher, em liberdade, o que se entende não ser indispensável à vida; dizer “não” estrutura-nos como pessoas e como crentes e abarca toda a dimensão do humano, dos sentimentos, da corporeidade, das necessidades que fazem parte da natureza humana e que podem ser orientadas por valores transcendentes para a plenitude da vida. O jejum ou a abstinência alimentar deve, portanto, orientar-se para a conversão de toda a nossa existência que se abre aos outros, no dom de si. Assim entendo o Angelus do Papa no passado dia 28 de Fevereiro. Francisco, com a clareza que já nos habituou, falou da necessidade de um jejum muito particular: o da bisbilhotice e da calúnia para com os irmãos. Ele definiu várias vezes o mexerico como “terrorismo da tagarelice”. O termo “terrorismo” é forte mas expressa muito bem o seu poder devastador. Muitos são os motivos que nos levam a murmurar: às vezes temos inveja do bem dos outros e não podemos suportar que outros desfrutem de dons particulares; outras vezes, “desprezamos” algumas pessoas para descarregar a nossa raiva e realizar uma pequena, mas terrível vingança; outros ainda, porque satisfazemos a nossa necessidade de nos sentirmos superiores aos que criticamos. Lembremos que denegrir é diabólico e visa apenas semear a discórdia, dividir famílias e comunidades, insinuar suspeitas em todos. Tantas vezes confundimos o que é miseravelmente egoísta e mau com a verdade, a franqueza, a caridade e a liberdade. Levianamente, não refletimos sobre as palavras que saem de nossa boca e sobre os pensamentos que habitam a nossa mente, causando danos irreparáveis. Se o Jejum e a abstinência não servir para a nossa conversão integral, não serve para nada. (© iMissio)

A tentação de Cristo e as nossas tentações

No início do tempo litúrgico que nos aproxima da Páscoa, somos convidados a olhar para a realidade da tentação que Jesus experimentou e que todos os seres humanos experimentam. Pela sua complexidade, deixamos de compreender o que seja a tentação e a importância que tem como forma de explicação da existência. Dizemos que a tentação é a possibilidade de seguir pela via errada, quando é dado ao nosso arbítrio seguir diversas vias. Mas a tentação é mais do que isso. Ela situa-se nas profundezas do nosso espírito. Na origem do viver em liberdade está o nosso poder de agir. É aí que se situa a tentação. Todo o poder de viver e de agir dado ao ser humano coincide com a identidade que lhe dá a vida, ou Deus. Por isso, ele não pode fantasiar o seu poder, como se o poder fosse um objecto que se pode acrescentar, manipular, desencadear sobre os outros, uma vez acumulado. Fantasiar o poder significa desenvolver seguranças como se o poder de viver fosse auto-originado pelo ser humano. Essas seguranças são ilusórias e ficcionadas, pois ninguém pode dispor da sua vida para lá da doação originária dela. Todo o poder de viver vem do recuo até ao lugar de origem de todas as vidas, o lugar do encontro com o divino. Creio que é este o sentido da descida de Jesus ao deserto e do jejum que aí experimentou. Esse é um lugar de secura onde a vida se encontra com a sua origem e escapa da todas as fantasias doentias por onde se esfuma a liberdade, vista como autêntico poder de viver. Estas fantasias doentias abundam e corroem a vida. Vista por este prisma, a luta contra a tentação é fundamental na vida dos seres humanos. É mesmo este o prisma pelo qual a luta pela liberdade é fundamental. E a nossa cultura de hoje bem precisa dessa luta nos dias que correm, na Igreja e fora dela. Basta olharmos a nossa volta e dar alguns exemplos, para ver como corremos infantilmente à procura de falsas seguranças. As notícias dão conta do modo como as pessoas correm à procura da vacina contra a pandemia, na qual depositam uma segurança que mostra a sua indigência existencial. Mesmo clérigos e bispos (pelo menos em Espanha) correm, com escândalo dos féis, a meter-se na fila para serem os primeiros. Sabemos como, segundo a tradição cavalheiresca, os capitães devem, por discrição e grandeza de alma, serem os últimos a fugir do lugar do perigo. Outro exemplo: foi noticiado como alguns cidadãos portugueses usaram a delação à polícia política de antigamente como forma de vingança mesquinha. Consta que alguns reverendos também usaram isso contra paroquianos seus. Este tipo de sentimento vil, delírio infantil de omnipotência, continua presente no nosso quotidiano e é amplamente divulgado pela comunicação social. São dois exemplos de como o poder de agir fantasiado leva a uma falsa cultura. Uma verdadeira cultura é aquela que se baseia no poder de viver enraizado na fonte divina da vida. Os socorros humanos são prolongamentos deste desinteresse e não a sua substituição. É isto que nos faz falta neste tempo duro de pandemia que estamos a viver. Esse é o contributo fundamental que pode dar a proclamação do evangelho, nas actuais circunstâncias. Tínhamos assimilado a ideia de que a técnica torna a vida invulnerável. Isso é uma ilusão. Fiar-se nisso é uma tentação dos nossos dias. Não se recupera a saúde se não se desce até ao fundo da experiência humana, aí onde se situa o manancial que a todos sustenta. Os remédios humanos apenas têm poder como forma de ampliar essa força que não inventam nem substituem. As práticas quaresmais não podem ser formas de gratificação do nosso ego. Elas são formas de descida ao fundo da realidade aí onde Deus toca os corações. Neste sentido, a experiência religiosa é a necessidade humano primordial. Oxalá a quaresma nos possa dar essa experiência.

Estás à espera de que te agradeçam?

Não estejas. Se fizeste algo bom, isso vale por si mesmo, a menos que o tenhas feito para trocar por um agradecimento. Uma boa ação que não é agradecida pode tornar-se ainda mais nobre se dispensar reconhecimento. Há quem julgue que é senhor do mundo e que os outros existem apenas para o servir. Quem mais lhe faz as vontades e lhe satisfaz os apetites, esse sim, é o melhor. Depois há quem se interesse pelos outros, mas sempre cuidando de manter um equilíbrio entre o quanto dá e o quanto consegue receber. Uma espécie de sociedade comercial com contabilidade organizada. Dois egoísmos entrelaçados que enganam muitos, por se esforçarem por parecer amores. A gratuitidade é o ponto mais alto da forma como nos podemos relacionar com outra pessoa. A bondade que é a recompensa de si mesma. É excelente poder dar algo a quem precisa. Mesmo que não nos agradeça. Não lhe dará isso ainda mais valor? A gratidão é uma virtude de quem é forte e humilde. Os fracos de espírito são quase sempre orgulhosos, gente vulgar que pensa em si em primeiro lugar, e nos outros só quando sobra tempo e espaço ao seu egoísmo. Há até quem agradeça como forma de garantir que pode continuar a pedir e a receber mais. Eu devo ser bom e ajudar o meu próximo, não para que ele mo agradeça, antes sim porque quero ser melhor do que sou, contribuindo de forma positiva para o bem do outro. Se ele agradece isso ou não, é uma questão de detalhe. Devo lembrar-me do bem que me fizeram, sempre. Devo esquecer-me do bem que fiz, sempre. Queres saber quem és? Basta que repares na forma como tratas aqueles que não podem fazer nada por ti. Não esperes nunca que te agradeçam o bem que fazes a alguém. Não deixes nunca de o fazer. Eles precisam e tu mereces. (José Luís Nunes Martins)

O (teu) amor muda o mundo

Há alguém, algures por aí, à espera do seu lugar. O seu lugar-mais-amor do mundo. Onde (de)morar sem datas de validade. És tu. O teu abraço é o melhor lugar do mundo para alguém. Há alguém, algures por aí, à espera de quem lhe cative o coração. De quem o abrace. Para sempre. És tu. O teu sorriso abraça corações. Há alguém, algures por aí, à espera de um porto de abrigo. Que sossegue tempestades e medos. Onde descansar do mundo. És tu. As tuas mãos são o abrigo de alguém. Há alguém, algures por aí, à espera de um gesto que abrace tudo. Que cure o que se parte. Que cure o que dói. És tu. O teu abraço cura. Há alguém, algures por aí, à espera de quem lhe sinta o coração. De quem lhe abrace a alma. Como quem respira amor. És tu. O teu sorriso é em forma de amor. Há alguém, algures por aí, de olhos perdidos no vazio. À espera de quem os olhe por dentro. De quem os faça brilhar. És tu. Os teus olhos sorriem e fazem sorrir. Há alguém, algures por aí, à espera de um milagre. Que salve do abismo. Que salve de tudo. És tu. O teu abraço salva. Há alguém, algures por aí, à espera de quem lhe mude o dia. De quem lhe mude a vida. E o coração. És tu. O teu sorriso é a melhor parte do dia de alguém. Há alguém, algures por aí, à espera de quem fique ali. Ao seu lado e do lado de dentro. Como quem segura. Como quem guarda. És tu. As tuas mãos foram feitas para abraçar outras mãos. Há alguém, algures por aí, à espera de um sorriso em forma de abraço. De um sorriso tatuado no coração. És tu. O teu abraço faz corações sorrir. És tanto. Mais do que sabes. Há sempre alguém, algures por aí, a quem tu mudas o mundo. Mesmo sem saberes. Quando abraças. Quando sorris. Quando abraças mãos. Quando olhas. Quando vives, quando és, com amor. Quando amas. O (teu) amor muda o mundo. Sabes? Em quantos corações já tatuaste um sorriso? (© iMissio)

Cuidar da vida frágil

Guardo em mim uma gratidão para com a enfermeira que, há uns anos, vendo a minha angústia por não estar a conseguir ajudar uma pessoa de família a encontrar o que então me parecia um equilíbrio psíquico ao seu alcance, me disse: “Perceba que isto não é ela, mas a doença dela.” É verdade: levamos muito tempo a perceber o óbvio. Porque sabemos mais ou menos cuidar de nós próprios e sustentar a nossa autonomia, julgamos saber automaticamente cuidar dos outros. E não é assim. O cuidado requer, como tudo na vida, uma aprendizagem. Mas é um dado universal: todos podemos aprender. O cuidado não é apenas uma espécie de técnica de manutenção. Certamente há uma dimensão técnica importante no cuidado, mas ele não se realiza humanamente sem a escuta, o reconhecimento do outro, a empatia, a solicitude, a participação ou a delicadeza. No princípio do cuidado está a ativação da nossa responsabilidade pelo outro. Como no seu oposto está a indiferença, o abandono ou o descarte. Penso nos largos milhares de cuidadores (na verdade, de cuidadoras, pois as estatísticas dizem que mais de 60% são mulheres) que, entre nós, se ocupam dos pais ou familiares doentes, que tratam de jovens e adultos portadores de deficiência, acompanhando-os jornada após jornada. Prestando atenção à toma dos medicamentos, preparando as refeições, ajudando-os a caminhar um pouco, estimulando-os com conversas, roubando para eles, de qualquer parte, pequenos fragmentos de azul e recebendo em troca cintilações que, na sua intensidade, se diria não serem apenas cintilações. Lutando muitas vezes, em solidão, para afirmar o valor da vida humana numa sociedade que em vez de simplificar os auxílios, burocratiza, distancia-se e dificulta. Porém, não tenhamos dúvidas: é o cuidado a grande experiência humanizadora, o lugar do mundo onde mais aprendemos, o grande espaço de sabedoria autêntica. Sem a cultura do cuidado não haverá futuro e tudo representará sempre mais um beco sem saída. Há quem contraponha: “O cuidado só por si não oferece a solução.” A resposta é: pelo menos oferece caminhos. A gramática bíblica traduz este debate num fundamental conceito, que em hebraico se diz tiqqun. O termo tiqqun, mesmo se inclui outros significados, é normalmente traduzido como “reparação” ou “restauração”. A história narrada na Bíblia não é uma história linear ou que escolha omitir a sua condição vulnerável, trágica e ferida. Pelo contrário: os livros sagrados constituem documentos inapagáveis do sofrimento humano no tempo; contam avalanchas e razias, perdas de estatuto político e deportações, a dor dos prisioneiros e a mortificação incomensurável dos escravos; falam de doenças individuais, de infortúnios e desastres, de cercas sanitárias (como no caso da lepra) e de histórias clínicas agravadas. Mas na conceção bíblica a vida não se resume ao enredo niilista dos seus agravos. A vida é também prática e esperança de reparação. Ora, uma forma histórica de reparação devida à dor humana é precisamente o cuidado. Em Portugal, com solavancos e atrasos, lá se chegou a uma das leis que correspondem efetivamente a um avanço civilizacional: a aprovação do Estatuto do Cuidador Informal. Estima-se que possam reclamar o direito a ele (porque, em concreto, já o exercem) cerca de 800 mil portugueses. Contudo, a lentidão dos processos administrativos e a escassa informação pública têm provocado uma ralentização inaceitável. Até meio de dezembro passado, o número dos cidadãos que pediu o documento de acesso ao estatuto não chegava aos 4 mil. E este facto torna ainda mais violenta e incompreensível a pressa em aprovar uma lei desumana como a da eutanásia. (Tolentino Mendonça –  Jornal Expresso)