O que é um pai?

Sobre a pergunta “o que é um pai?” há três aspetos que a psicologia e as ciências humanas ajudaram a modernidade a consolidar como adquirido. Em primeiro lugar a proeminência que tem o pai na constituição da realidade psíquica de cada pessoa. Não podemos ser sem pai, pois aquilo que essa figura transmite (na função de pai real, simbólico e imaginário) é essencial para a fundação do sujeito. Em segundo lugar, enquanto que a mãe é representada pela evidência da carnalidade donde provimos, o pai assoma primariamente no interior do filho como uma interrogação, uma questão por explicar. O célebre adágio jurídico Mater semper certa, pater nunquam tem, antes de tudo, uma conotação existencial que cada um deve afrontar. E esse é um decisivo trabalho interno. Em terceiro lugar, está o facto de constituir uma verdade universal a afirmação de Jesus: “Ninguém conhece o Pai a não ser o Filho” (Mt 11:27). É isso que teoriza Jacques Lacan quando recorda que “é o jogo jogado com o pai” que permite aceder à sua (e à nossa) compreensão. Quer dizer, é necessário aprofundar a dádiva que o pai representa para passar da exclusividade do laço materno, fundado na fusão e no desejo, para a complementaridade do laço paterno que nos introduz na experiência da diferenciação e na objetividade da lei. Obsidiados pelo transe do consumo desejamos tanto que já não somos capazes de desejar. O desejo precisa da iluminação que é trazida pela lei De que “o jogo jogado com o pai” é complexo e, por vezes, dilemático dá amplamente conta a literatura do século XX, situando-se entre a vontade de rutura e o desejo de reconciliação. Bastaria pensar na contundência da carta que Kafka escreve ao pai: “Queridíssimo pai, Perguntaste-me, há pouco tempo, por que razão afirmo ter medo de ti. Como de costume, não soube responder; por um lado, precisamente pelo medo que tenho de ti, por outro, porque, na base deste medo, existem demasiados pormenores para que possa exprimi-los oralmente… E se neste momento procuro responder-te por escrito será de forma bastante incompleta porque, também por escrito, o medo e as suas consequências me tolhem diante de ti.” Ou, em linha divergente, na confissão que o poeta Umberto Saba faz de que possuía uma imagem errada do pai até ter percebido duas coisas: a necessidade de se reconciliar com a fragilidade do pai (“ele era um miúdo”) e de lhe fazer justiça como transmissor da vida (“o dom que recebi foi dele que recebi”). Quando se fala de um necessário trabalho interno com a figura paterna também é disto que se fala: a capacidade de aceitação dos limites, o reconhecimento de um dom absoluto mesmo que transmitido de forma débil, a experiência de perdão, o reencontro e a prevalência da gratidão. A cultura contemporânea não facilita, em nenhum modo, este reencontro, pois passou de uma demolição sistemática a uma estratégica (e eficaz) operação de evaporação do pai. Hoje, não existe propriamente uma rebelião contra a figura do pai, como em outras épocas do passado. A estratégia é antes a de agir como se o pai, e o que ele representa, tivessem sido removidos. Essa é, em grande medida, como bem o explica o psicanalista Massimo Recalcati, o artifício forjado pelas nossas sociedades quando impõem o consumo como padrão de felicidade. O desejo torna-se uma espécie de mantra omnipresente, que a publicidade repete sem cessar para alimentar o circuito insone do consumo. Mas o seu efeito exasperado é paradoxal: obsidiados pelo transe do consumo desejamos tanto que já não somos capazes de desejar. De facto, o desejo precisa da iluminação que é trazida pela lei. A conclusão, também aí, é que não podemos viver plenamente sem integrar a relação com o pai e o que ele significa. (in Jornal Expresso)
Quem é mais feliz? Quem dá ou quem recebe?

Ao longo da nossa vida, vivemos situações em que damos ou recebemos. Em qual, destas situações, nos sentimos realmente felizes? Sempre aprendi que quem dá também recebe, por isso, podemos ser felizes nas duas situações. Mas mais feliz é aquele que dá, sem esperar receber nada em troca. Mas acaba por receber o melhor presente de todos, que é o agradecimento do outro. Seja um agradecimento em palavras ou em gestos. É dando que recebemos. Não há maior amor do que dar a vida pelo outro. Deus levou este sentimento até ao fim, ao ponto de entregar o seu próprio filho à morte, para demonstrar o seu Amor por nós. Deus é amor! Que sentido damos à palavra Amor? Será um sentimento banal? Ou será “fogo que arde sem se ver”? Amor é entrega, é dar sem esperar nada em troca. Mas no fim receber o maior dos presentes, o Amor do outro. O amor leva à partilha, por isso, sentimos que temos que nos dar. Só assim nos sentimos realizados e completos. Há um episódio, na viagem ao Uganda, que ficará sempre guardado no coração. Na hora de almoço, tínhamos algumas crianças a brincar connosco e não conseguíamos ir almoçar e deixá-las ali fora, à espera. Ou seja, iriamos entrar para reconfortar o estomago, enquanto aquelas crianças, que não sabíamos se tinham comido alguma coisa durante o dia, iriam ficar do lado de fora à espera, para voltarmos para as brincadeiras. Algo nos dizia que tínhamos que fazer algo diferente. Até que alguém nos sugeriu, partilharmos o nosso prato com elas. Foi a voz de Jesus que, naquele momento, nos falou. E mostrou que podíamos sempre ser mais. Cada um de nós encheu o prato (mais do que o habitual), sentamo-nos no jardim e convidamos as crianças a sentarem-se connosco. Elas a medo lá se sentaram, esperando sempre que fossemos nós os primeiros a comer. Nesse dia não houve talheres, comemos com as mãos. Para elas era algo novo também, muitas nem entendiam porque o fazíamos, mas aceitaram o convite. Mesmo sem falarmos a mesma língua, sabemos que o Amor é a linguagem universal e então foi possível comunicar. Através de gestos, muitos sorrisos, abraços e beijos! Se fui feliz naquele dia? Nunca tinha experimentado tamanha felicidade! Ser missionário é ser feliz! É dando que se recebe! (© iMissio,)
Dá o exemplo, em vez de dares conselhos

Nunca sabemos em quantas vidas a nossa toca. Há pessoas que nos marcam sem se aperceberem, assim como também haverá muita gente para quem somos importantes sem que o saibamos. Dar o exemplo talvez seja a única forma de influenciar a vida dos outros. Um bom conselho pode explicar e entusiasmar, mas só o exemplo nos faz passar à ação com eficácia. As regras que impomos à nossa vida derivam dos sucessos e dos (muitos) fracassos do nosso passado, não de teorias que ainda ninguém experimentou, por melhores que possam parecer. Desconfia sempre dos sermões de quem não os segue. Se são só palavras o que tens para dar, então que sejam breves e apenas para relatar as tuas decisões erradas e a quantas desgraças elas te levaram. Mas, nem penses em exigir a alguém que faça como dizes, porque todos, tal como tu, têm o direito de seguir um caminho errado. Só se acredita naquilo que se pratica. Devemos ser capazes de dar bons exemplos, ao mesmo tempo que resistimos à tentação dos maus. Não dês conselhos, menos ainda a quem não tos pediu, e mesmo quem tos pede… talvez já tenha decido o que vai fazer, procurando apenas quem o elogie. Diz a verdade, por mais desagradável que seja, mais ainda a quem confia em ti . Mas faz da tua vida uma lição que dê testemunho vivo do teu amor. Procura os conselhos de quem te diz a verdade e está disposto a ajudar-te no que precisares. (José Luís Nunes Martins)
O que quero com o jejum e a abstinência?

Ainda jejuamos na Quaresma? A pergunta não é nova. Mas todos os anos sou questionado sobre a prática do jejum e da abstinência. Por brincadeira, costumo responder que é um desafio que me ponho sempre que me olho ao espelho e digo a mim mesmo: “Paulo, tens que perder peso!” Durante este tempo favorável, já escrevi sobre a necessidade da conversão para uma vida voltada para o essencial, sem máscaras; sobre o silêncio necessário para este regresso; sobre a peregrinação que é a condição necessária para ver o sentido da nossa vida; agora quero dissertar sobre estas exigências que a Igreja nos propõe. Jejum e abstinência não fazem qualquer sentido na vida cristã se forem um fim em si mesmo! Será muito similar àquele que se propõe fazer uma dieta sem, concomitantemente, levar uma alimentação regrada e saudável acompanhada por exercício físico. Percebe-se o porquê. Acaba a dieta, volta tudo ao normal ou ainda pior. Assim é com a disciplina quaresmal. Esta renúncia não é um fim em si mesma. mas orienta-se para a abertura do coração e da mente, para uma existência evangélica, na qual o Espírito possa inscrever, a nova vida salva em Jesus Cristo. É também o caminho para uma maior solidariedade e partilha com tantos irmãos que têm fome de pão e de paz. A renúncia começa justamente com a capacidade de escolher, em liberdade, o que se entende não ser indispensável à vida; dizer “não” estrutura-nos como pessoas e como crentes e abarca toda a dimensão do humano, dos sentimentos, da corporeidade, das necessidades que fazem parte da natureza humana e que podem ser orientadas por valores transcendentes para a plenitude da vida. O jejum ou a abstinência alimentar deve, portanto, orientar-se para a conversão de toda a nossa existência que se abre aos outros, no dom de si. Assim entendo o Angelus do Papa no passado dia 28 de Fevereiro. Francisco, com a clareza que já nos habituou, falou da necessidade de um jejum muito particular: o da bisbilhotice e da calúnia para com os irmãos. Ele definiu várias vezes o mexerico como “terrorismo da tagarelice”. O termo “terrorismo” é forte mas expressa muito bem o seu poder devastador. Muitos são os motivos que nos levam a murmurar: às vezes temos inveja do bem dos outros e não podemos suportar que outros desfrutem de dons particulares; outras vezes, “desprezamos” algumas pessoas para descarregar a nossa raiva e realizar uma pequena, mas terrível vingança; outros ainda, porque satisfazemos a nossa necessidade de nos sentirmos superiores aos que criticamos. Lembremos que denegrir é diabólico e visa apenas semear a discórdia, dividir famílias e comunidades, insinuar suspeitas em todos. Tantas vezes confundimos o que é miseravelmente egoísta e mau com a verdade, a franqueza, a caridade e a liberdade. Levianamente, não refletimos sobre as palavras que saem de nossa boca e sobre os pensamentos que habitam a nossa mente, causando danos irreparáveis. Se o Jejum e a abstinência não servir para a nossa conversão integral, não serve para nada. (© iMissio)
A tentação de Cristo e as nossas tentações

No início do tempo litúrgico que nos aproxima da Páscoa, somos convidados a olhar para a realidade da tentação que Jesus experimentou e que todos os seres humanos experimentam. Pela sua complexidade, deixamos de compreender o que seja a tentação e a importância que tem como forma de explicação da existência. Dizemos que a tentação é a possibilidade de seguir pela via errada, quando é dado ao nosso arbítrio seguir diversas vias. Mas a tentação é mais do que isso. Ela situa-se nas profundezas do nosso espírito. Na origem do viver em liberdade está o nosso poder de agir. É aí que se situa a tentação. Todo o poder de viver e de agir dado ao ser humano coincide com a identidade que lhe dá a vida, ou Deus. Por isso, ele não pode fantasiar o seu poder, como se o poder fosse um objecto que se pode acrescentar, manipular, desencadear sobre os outros, uma vez acumulado. Fantasiar o poder significa desenvolver seguranças como se o poder de viver fosse auto-originado pelo ser humano. Essas seguranças são ilusórias e ficcionadas, pois ninguém pode dispor da sua vida para lá da doação originária dela. Todo o poder de viver vem do recuo até ao lugar de origem de todas as vidas, o lugar do encontro com o divino. Creio que é este o sentido da descida de Jesus ao deserto e do jejum que aí experimentou. Esse é um lugar de secura onde a vida se encontra com a sua origem e escapa da todas as fantasias doentias por onde se esfuma a liberdade, vista como autêntico poder de viver. Estas fantasias doentias abundam e corroem a vida. Vista por este prisma, a luta contra a tentação é fundamental na vida dos seres humanos. É mesmo este o prisma pelo qual a luta pela liberdade é fundamental. E a nossa cultura de hoje bem precisa dessa luta nos dias que correm, na Igreja e fora dela. Basta olharmos a nossa volta e dar alguns exemplos, para ver como corremos infantilmente à procura de falsas seguranças. As notícias dão conta do modo como as pessoas correm à procura da vacina contra a pandemia, na qual depositam uma segurança que mostra a sua indigência existencial. Mesmo clérigos e bispos (pelo menos em Espanha) correm, com escândalo dos féis, a meter-se na fila para serem os primeiros. Sabemos como, segundo a tradição cavalheiresca, os capitães devem, por discrição e grandeza de alma, serem os últimos a fugir do lugar do perigo. Outro exemplo: foi noticiado como alguns cidadãos portugueses usaram a delação à polícia política de antigamente como forma de vingança mesquinha. Consta que alguns reverendos também usaram isso contra paroquianos seus. Este tipo de sentimento vil, delírio infantil de omnipotência, continua presente no nosso quotidiano e é amplamente divulgado pela comunicação social. São dois exemplos de como o poder de agir fantasiado leva a uma falsa cultura. Uma verdadeira cultura é aquela que se baseia no poder de viver enraizado na fonte divina da vida. Os socorros humanos são prolongamentos deste desinteresse e não a sua substituição. É isto que nos faz falta neste tempo duro de pandemia que estamos a viver. Esse é o contributo fundamental que pode dar a proclamação do evangelho, nas actuais circunstâncias. Tínhamos assimilado a ideia de que a técnica torna a vida invulnerável. Isso é uma ilusão. Fiar-se nisso é uma tentação dos nossos dias. Não se recupera a saúde se não se desce até ao fundo da experiência humana, aí onde se situa o manancial que a todos sustenta. Os remédios humanos apenas têm poder como forma de ampliar essa força que não inventam nem substituem. As práticas quaresmais não podem ser formas de gratificação do nosso ego. Elas são formas de descida ao fundo da realidade aí onde Deus toca os corações. Neste sentido, a experiência religiosa é a necessidade humano primordial. Oxalá a quaresma nos possa dar essa experiência.