Para que este ano haja Natal

Continua o tempo do distanciamento. É preciso ficarmos longe, dizem-nos e repetem-nos, para reduzir o perigo do contágio. Assim seja, pela saúde e para o bem pessoal e coletivo. Mas é inútil negar que no seio desta necessária precaução está a insinuar-se uma subtil desconfiança em relação ao outro, algo que talvez não tenhamos a coragem de admitir abertamente, mas que, lentamente, está a plasmar o nosso olhar para as pessoas e as coisas, aa maneiras como que perspetivamos a realidade. É o fruto envenenado de um vírus que nos está a revela, inclusive aos olhos de quem o tinha desvalorizado, a sua perigosidade e difusão, inquina os poços onde a nossa humanidade vai beber, e talvez deixe traços indeléveis nos corações e nas mentes, como certas radiações mortíferas que entram no sangue e libertam, lentamente mas inexoravelmente, os seus efeitos. O Covid-19 está a contaminar milhões de corpos, mas como podemos impedir que contamine também os corações? Haverá algo que nos permitirá manter-nos de cabeça erguida diante deste inimigo enganador e invisível? Serão suficientes certas frases confortadoras como «tudo ficará bem» e «conseguiremos vencer» que trocamos ao telemóvel ou que alguns ainda expõem nas varandas e janelas? Não é um acaso que muitas cartolinas e faixas com estas palavras, numerosas durante o confinamento da primavera, tenham desaparecido, e os poucos que restam estão desvanecidos, quase como uma confirmação tácita de quanto eram frágeis desejos fundados apenas numa espécie de otimismo da vontade, que o tempo e a realidade se encarregaram de colocar em crise. É preciso mais para suportar o impacto deste tempo. É preciso algo que desafie o ceticismo, a resignação, o cinismo, o medo que estão a apoderar-se dos corações, tudo expressões de um inimigo poderoso que se chama niilismo, ausência de razões fortes que deem solidez à existência. É preciso algo de especial para enfrentar este desafio. Melhor, é preciso alguém. Alguém que testemunho uma maneira de viver e de relacionar-se com os outros fundada na consciência de que ninguém se salva sozinho, que há uma comunhão última que é hoje mais evidente que nunca, a mesma que o papa Francisco nos recorda na encíclica “Fratelli tutti”. Para nós, cristãos, esta é a estação – tão comprometedora como entusiasmante – para provar se a fé é capaz de reger o embate de um ataque poderoso e difuso como o que está contido no invisível coronavírus que nos assedia. Ou se, antes, nos resignamos a considera-la um belo bibelô, algo que, no máximo, nos pode presentear um pouco de consolação, mas que não corre nas veias, não se torna experiência vivida e testemunho a oferecer ao mundo. Nestes dias temos ouvido, de várias vozes, que «temos de salvar o Natal», como referência, não exclusiva, à necessidade de inverter a tendência negativa dos consumos. Mas o que está a acontecer desafia-nos a reconhecer que talvez sejamos nós a precisar de sermos salvos desse entendimento do Natal, de abrir o coração ao Deus que se fez companheiro de estrada da humana fragilidade, abraçando-a com um amor maior do que aquele que o ser humano é capaz de produzir. O mistério da incarnação – que nos preparamos para celebrar daqui a pouco mais de um mês, mas que a cada dia podemos reviver na existência – fala-nos de um Deus que, ao assumir a condição humana, foi capaz de vencer todo o distanciamento. Seremos capazes de o reconhecer também hoje? (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)
As perguntas que fazem medo

Há perguntas que nos fazem medo, e talvez não devessem. Há interrogações que não nos pedem unicamente informações, mais sérias ou mais banais que sejam, que estamos educadamente dispostos a fornecer, mas aquela verdade concreta de nós que nos custa reconhecer. Há indagações que não são apenas técnicas, dirigidas às nossas competências e aos nossos argumentos defensivos. Há questões dirigidas a um território interior feito de silêncios, adiamentos, fadigas, sonhos que se extinguiram sem deixar espaço a outros sonhos. Vem à minha memória um pequeno facto que me foi contado por um amigo. Um destes dias, quando trazia da escola para casa a filha, ela, com os seus quatro anos, perguntou-lhe: «Papá, os grandes são felizes?». Ela tomou a menina nos braços, e só conseguiu abraçá-la com força, durante muito tempo. «Se respondo, desabo em lágrimas», dizia para si. Ajuda-nos, Senhor, a colher a importância das perguntas que nos desestabilizam, em vez de nos tornarmos, com idade adulta, profissionais da fuga. (D. José Tolentino Mendonça)
Não há felicidade sem disciplinar o desejo

Desde há milénios a sabedoria bíblica repete: «Onde há um homem ou uma mulher, há procura de vida, desejo de felicidade». Esta, na realidade, é a vocação mais radical que habita o ser humano. O desejo ínsito em nós como uma pulsão e uma força que brota da nossa profundidade é desejo de felicidade. Fome, sede, necessidade de respirar são instintos e carências de todos os animais, enquanto felicidade, amor, sentido de vida são desejo e busca em cada pessoa humana. Mas o ser humano pode ser arrastado por este desejo, deixando de saber discernir os necessários limites, e assim o desejo, de vocação, arrisca tornar-se em instinto mortífero. Infelizmente, entre as dez palavras de Moisés não há a necessária reflexão sobre aquela que diz: não desejes aquilo que pertence ao teu próximo. Este mandamento especifica bem a origem da inveja, do ciúme, do rancor e das formas de violência de que podem revestir-se. O desejo pode ser tão forte que se torna cupidez, uma voragem que impele a tomar, a extorquir; e quando tal não é possível, induz a negar e destruir aquilo que se deseja e é possuído pelos outros. O desejo de obter aquilo que não se tem ou de se tornar aquilo que não se é, se não é disciplinada e contida, desencadeia inveja e rancor para com as pessoas que beneficiam dessas condições, como alguém chegou a dizer: «Eram felizes, eu não, por isso matei-os». Este desejo muda o olhar (“inveja” deriva do latim “in-videre”, não querer ver, portanto, olhar de maneira turva, má). O olhar alterado vive do confronto e da comparação, vê a carência e o sofrimento como sendo causados por quem, ao contrário, é feliz, tem sucesso, recebe reconhecimentos, tem riqueza. Assim, a existência é envenenada pelo confronto que faz emergir sem cessar a pergunta: “Porquê a ele sim, e a mim não?”. Vivemos hoje uma estação de incerteza e rancor social, que acaba por suscitar tentações de inveja, e portanto de violência, sobretudo em pessoas “infelizes”: pessoas desafortunadas a quem é negado qualquer tipo de amor humano, desde logo por parte dos pais, ou que não souberam reconhecê-lo; pessoas que podem recriminar-se contra a história familiar ou até contra o destino… Uma só é a certeza, sob a forma de pretensão: tem de se ser feliz a todo o custo. Também não pode ser esquecida a presença dentro do invejoso do narcisista, que espera tudo do exterior, da admiração dos outros. Esta figura substitui com o amor de si a sua dor inconfessável pelo facto de não ser amado e de não saber amar. Tem medo do amor, e por isso sofre de uma impotência que o conduz a ser vingativo e cruel para quantos agravam a imagem que ele tem de si ou lhe apresentam a imagem daquilo que ele gostaria de ser, mas sem o conseguir. Disciplinar o desejo deveria ser uma verdadeira exigência da educação, sobretudo nos jovens, mas na realidade é um exercício necessário em cada idade da vida: então, sim, é possível construir a felicidade. (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)
A barca da alegria

Faz-nos navegar, Senhor, na barca da alegria que largámos em algum lugar, oculta entre os ramos e a folhagem. Torna-nos disponíveis para as viagens longas, como sempre são as viagens do coração. Que saibamos viajar pela rota das palavras reencontradas, das conversas reveladoras sem um mapa preciso, como as trajetórias dos pássaros, inesperadamente felizes. Faz com que ousemos compreender a maneira em que o Espírito ilumina o nosso presente, com os seus surpreendentes atravessamentos de portas fechadas e de incredulidades consolidadas. Que nenhum ressentimento alente o vínculo que nos liga à memória do amor. Ajuda-nos a acolher a força trémula e fortíssima da Vida, que perdura em nós como um chamamento incessante. Ajuda-nos a não menosprezar as nossas mãos vazias, mas a compreender que são remos para o nosso navegar entre espera e promessa. Ajuda-nos a não eliminar espiritualmente a pobreza, recordando-nos que a pertencemos a uma multidão de sedentos, de impacientes, de desejadores. Mantém-nos distantes do tempo interrompido e obscuro em que experimentamos a negação de nós mesmos e de ti. Faz com que não nos esqueçamos que o teu amor é capaz de transformar em desejo incandescente as nossas ruinas, paralisias e desistências. E no acolhimento deste amor, faz deflagrar em nós a força geradora da Tua Presença radiosa. (D. José Tolentino Mendonça)
“Mês das Almas”

Na piedade popular, Novembro é o «Mês das Almas». É oportuno, neste contexto, reler o Diretório sobre a piedade popular e a Liturgia, publicado pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos em 2001, que dedica o seu capítulo VII ao tema do «sufrágio pelos defuntos». O ponto de partida da reflexão é fé na ressurreição dos mortos, «elemento essencial da revelação cristã», que «implica uma visão peculiar do inelutável e misterioso evento da morte» (n. 249). «A morte é a passagem à plenitude da verdadeira vida, pelo que a Igreja, subvertendo a lógica e as perspetivas deste mundo, chama ao dia da morte do cristão dies natalis, dia do seu nascimento para o céu» (Ibid.). «Segundo a fé da Igreja, já começámos no nosso batismo a “morrer com Cristo”: nele, o discípulo do Senhor já está sacramentalmente «morto com Cristo», para viver uma vida nova; e, se ele morrer na graça de Cristo, a morte física selará aquele “morrer com Cristo” e fá-lo-á chegar à consumação, incorporando-o plenamente para sempre em Cristo Redentor» (n. 250). «Os sufrágios são uma expressão cultual da fé na comunhão dos Santos» (n. 251). Esta fé encontra a ocasião de se exprimir na celebração do sacrifício eucarístico e em muitas outras expressões de piedade como orações, esmolas, obras de misericórdia. Ocasião privilegiada para estes sufrágios são as celebrações exequiais que têm na celebração eucarística o seu momento culminante (n. 252). Mas a Igreja oferece o sacrifício eucarístico pelos defuntos em muitas outras ocasiões: «a celebração da Missa em sufrágio das almas dos defuntos é o modo cristão de recordar e de prolongar, no Senhor, a comunhão com todos os que passaram o limiar da morte» (n. 255). A piedade cristã valoriza particularmente a comemoração de todos os Fiéis Defuntos. Entretanto, a Igreja sempre recorda e intercede pelos seus filhos que já partiram deste mundo «marcados com o sinal da fé», tanto na celebração quotidiana da Eucaristia, como nas preces de Vésperas (Ibid.). O Diretório recorda a conveniência de «educar o sentir dos fiéis à luz da celebração eucarística, na qual a Igreja ora para que sejam associados à glória do Senhor ressuscitado todos os fiéis defuntos, de todos os tempos e lugares, evitando o perigo de uma visão possessiva ou particularista da Missa pelo “seu” defunto» (n. 255). Na memória dos defuntos, sublinha o Diretório, «a relação entre liturgia e piedade popular deve enfrentar-se com muita prudência e tato pastoral, quer no que se refere aos aspetos doutrinais quer quanto à harmonização entre ações litúrgicas e exercícios de piedade» (n. 256). «Antes de mais, é preciso que a piedade popular seja iluminada pelos princípios da fé cristã» (n. 257): o sentido pascal da morte dos batizados; a imortalidade da alma; a comunhão dos Santos; a ressurreição da carne; a manifestação gloriosa de Cristo «que há de vir para julgar os vivos e os mortos»; a retribuição segundo as obras de cada um; e a vida eterna (Ibid.). No n. 258, o Diretório enumera concretamente, alguns desvios que importa evitar: – o perigo da sobrevivência na piedade popular para com os defuntos de elementos ou aspetos inaceitáveis do culto pagão dos antepassados; – a invocação dos mortos para práticas divinatórias; – a atribuição aos sonhos sobre pessoas defuntas de significados e de efeitos imaginários, cujo receio, frequentemente, condiciona o agir dos fiéis; – o risco de que se insinuem formas de crença na reincarnação; – o perigo de negar a imortalidade da alma e de separar o evento morte da perspetiva da ressurreição, de tal forma que a religião cristã apareça, por assim dizer, como uma religião dos mortos; – a aplicação das categorias espácio-temporais à condição dos defuntos. A prática pastoral procurará prevenir tudo isso estando também atenta a não cair no erro doutrinal e pastoral mais difundido na sociedade moderna que consiste no «ocultamento da morte e dos seus sinais» (n. 259). (Secretariado Diocesano da Liturgia)