Reflexões da última semana do ano litúrgico… Viva Cristo Rei
A pandemia do coronavírus está a colocar-nos a todos num certo estado de ansiedade e de stress que antes não julgávamos real ou possível. Ouvimos frequentemente aquela expressão: “Éramos felizes e não sabíamos!…” Verdade seja dita que, quem já passou por outros estados de vida olha para esta pandemia com uma certa desconfiança. Graças a Deus, conheço tanta gente que, por questões de ordem pessoal ou de ordem vocacional, já passou por momentos muito intensos e stressantes, que “olham” para este estado de coisas com relativa serenidade e “espanto”. Sim. Conheço pessoas que viveram o ébola, muito mais letal… Viveram a fome, que é terrível… E não me quero alongar mais nestas tragédias” da vida humana… De facto, o desconhecido amedronta-nos. O saber, que contagiado por este vírus, não sei como vou reagir ou como vão reagir os meus, é muito mau… É angustiante! É “uma roleta russa”, como vi numa reportagem da televisão… Mas é a realidade humana! O problema é que o Homem contemporâneo, influenciado por aquele moderno, sempre se julgou senhor do tempo. Este vírus veio provar-nos que não somos “senhores de nada”. Somos finitos! Somos limitados! E é aqui que a fé nos questiona. A fé interroga-nos sobre o que pensamos da nossa humanidade: vives apenas neste mundo ou acreditas que há um novo mundo depois deste? Eis a grande diferença entre o crente e o não crente!… O simples mortal procura ser um Bom Homem neste mundo porque preocupado com o seu semelhante. O Homem de Fé, sabe que para além de melhorar a vida dos seus contemporâneos, constrói uma vida de eternidade. Então, toda esta tormenta é passageira, porque Deus é. Porque Deus está presente e sempre estará. Não acredito que esta pandemia seja uma prova que Deus coloque à minha ou à nossa fé. Mas é uma prova que EU ou NÓS podemos colocar à nossa crença. Deus está para além desta tormenta ou não? Cada um saberá dar a devida resposta a esta pergunta. Para mim, Jesus é rei. É o Cristo Rei, que não abdicou da condição divina mas que assumiu a realidade humana, para nos mostrar que para além de todo o sofrimento que a nossa condição de finitos, limitados, está a misericórdia divina. Somos filhos de Deus. Esse é o nosso destino. “Viva Cristo Rei!”, como gritou o jovem São José Luís Sánchez del Rio, antes de ser assassinado. (© iMissio,)
Recomeçar

Dá-nos, Senhor, depois de todos os nossos cansaços, um verdadeiro tempo de paz. Dá-nos, depois de tantas palavras, o dom do silêncio que purifica e recria. Dá-nos, depois de tantos caminhos apressadamente eliminados pela cortina de nevoeiro da distração, a possibilidade de contemplar com disponibilidade e plenitude cada porção de realidade, inclusive as realidades que nos custam. Dá-nos a alegria, depois das insatisfações que nos travam, como uma barca que se recorta na água. Dá-nos, Senhor, a possibilidade de viver sem presa, extasiados pela surpresa que os dias trazem consigo pela mão. Dá-nos a capacidade de viver de olhos abertos, de viver intensamente. Dá-nos a humilde simplicidade dos artesãos que, preferindo a sabedoria da experiência ao aparato das teorias, reconhecem que estão sempre a recomeçar. Permite-nos escutar a lição do cântaro na roda do oleiro; do cepo aplanado pelas mãos do carpinteiro; da massa que o padeiro pacientemente transforma em pão. Dá-nos de novo, Senhor, a graça do canto, do assobio que imita a aérea felicidade dos pássaros, das imagens reencontradas, do riso partilhado. Dá-nos a força de impedir que as duras necessidades do viver esmaguem o desejo dentro de nós e que se dissipe a transparência dos nossos sonhos. Faz de nós peregrinos, que no visível vislumbram a discreta insinuação do invisível. (D. José Tolentino Mendonça)
Para que este ano haja Natal

Continua o tempo do distanciamento. É preciso ficarmos longe, dizem-nos e repetem-nos, para reduzir o perigo do contágio. Assim seja, pela saúde e para o bem pessoal e coletivo. Mas é inútil negar que no seio desta necessária precaução está a insinuar-se uma subtil desconfiança em relação ao outro, algo que talvez não tenhamos a coragem de admitir abertamente, mas que, lentamente, está a plasmar o nosso olhar para as pessoas e as coisas, aa maneiras como que perspetivamos a realidade. É o fruto envenenado de um vírus que nos está a revela, inclusive aos olhos de quem o tinha desvalorizado, a sua perigosidade e difusão, inquina os poços onde a nossa humanidade vai beber, e talvez deixe traços indeléveis nos corações e nas mentes, como certas radiações mortíferas que entram no sangue e libertam, lentamente mas inexoravelmente, os seus efeitos. O Covid-19 está a contaminar milhões de corpos, mas como podemos impedir que contamine também os corações? Haverá algo que nos permitirá manter-nos de cabeça erguida diante deste inimigo enganador e invisível? Serão suficientes certas frases confortadoras como «tudo ficará bem» e «conseguiremos vencer» que trocamos ao telemóvel ou que alguns ainda expõem nas varandas e janelas? Não é um acaso que muitas cartolinas e faixas com estas palavras, numerosas durante o confinamento da primavera, tenham desaparecido, e os poucos que restam estão desvanecidos, quase como uma confirmação tácita de quanto eram frágeis desejos fundados apenas numa espécie de otimismo da vontade, que o tempo e a realidade se encarregaram de colocar em crise. É preciso mais para suportar o impacto deste tempo. É preciso algo que desafie o ceticismo, a resignação, o cinismo, o medo que estão a apoderar-se dos corações, tudo expressões de um inimigo poderoso que se chama niilismo, ausência de razões fortes que deem solidez à existência. É preciso algo de especial para enfrentar este desafio. Melhor, é preciso alguém. Alguém que testemunho uma maneira de viver e de relacionar-se com os outros fundada na consciência de que ninguém se salva sozinho, que há uma comunhão última que é hoje mais evidente que nunca, a mesma que o papa Francisco nos recorda na encíclica “Fratelli tutti”. Para nós, cristãos, esta é a estação – tão comprometedora como entusiasmante – para provar se a fé é capaz de reger o embate de um ataque poderoso e difuso como o que está contido no invisível coronavírus que nos assedia. Ou se, antes, nos resignamos a considera-la um belo bibelô, algo que, no máximo, nos pode presentear um pouco de consolação, mas que não corre nas veias, não se torna experiência vivida e testemunho a oferecer ao mundo. Nestes dias temos ouvido, de várias vozes, que «temos de salvar o Natal», como referência, não exclusiva, à necessidade de inverter a tendência negativa dos consumos. Mas o que está a acontecer desafia-nos a reconhecer que talvez sejamos nós a precisar de sermos salvos desse entendimento do Natal, de abrir o coração ao Deus que se fez companheiro de estrada da humana fragilidade, abraçando-a com um amor maior do que aquele que o ser humano é capaz de produzir. O mistério da incarnação – que nos preparamos para celebrar daqui a pouco mais de um mês, mas que a cada dia podemos reviver na existência – fala-nos de um Deus que, ao assumir a condição humana, foi capaz de vencer todo o distanciamento. Seremos capazes de o reconhecer também hoje? (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)
As perguntas que fazem medo

Há perguntas que nos fazem medo, e talvez não devessem. Há interrogações que não nos pedem unicamente informações, mais sérias ou mais banais que sejam, que estamos educadamente dispostos a fornecer, mas aquela verdade concreta de nós que nos custa reconhecer. Há indagações que não são apenas técnicas, dirigidas às nossas competências e aos nossos argumentos defensivos. Há questões dirigidas a um território interior feito de silêncios, adiamentos, fadigas, sonhos que se extinguiram sem deixar espaço a outros sonhos. Vem à minha memória um pequeno facto que me foi contado por um amigo. Um destes dias, quando trazia da escola para casa a filha, ela, com os seus quatro anos, perguntou-lhe: «Papá, os grandes são felizes?». Ela tomou a menina nos braços, e só conseguiu abraçá-la com força, durante muito tempo. «Se respondo, desabo em lágrimas», dizia para si. Ajuda-nos, Senhor, a colher a importância das perguntas que nos desestabilizam, em vez de nos tornarmos, com idade adulta, profissionais da fuga. (D. José Tolentino Mendonça)
Não há felicidade sem disciplinar o desejo

Desde há milénios a sabedoria bíblica repete: «Onde há um homem ou uma mulher, há procura de vida, desejo de felicidade». Esta, na realidade, é a vocação mais radical que habita o ser humano. O desejo ínsito em nós como uma pulsão e uma força que brota da nossa profundidade é desejo de felicidade. Fome, sede, necessidade de respirar são instintos e carências de todos os animais, enquanto felicidade, amor, sentido de vida são desejo e busca em cada pessoa humana. Mas o ser humano pode ser arrastado por este desejo, deixando de saber discernir os necessários limites, e assim o desejo, de vocação, arrisca tornar-se em instinto mortífero. Infelizmente, entre as dez palavras de Moisés não há a necessária reflexão sobre aquela que diz: não desejes aquilo que pertence ao teu próximo. Este mandamento especifica bem a origem da inveja, do ciúme, do rancor e das formas de violência de que podem revestir-se. O desejo pode ser tão forte que se torna cupidez, uma voragem que impele a tomar, a extorquir; e quando tal não é possível, induz a negar e destruir aquilo que se deseja e é possuído pelos outros. O desejo de obter aquilo que não se tem ou de se tornar aquilo que não se é, se não é disciplinada e contida, desencadeia inveja e rancor para com as pessoas que beneficiam dessas condições, como alguém chegou a dizer: «Eram felizes, eu não, por isso matei-os». Este desejo muda o olhar (“inveja” deriva do latim “in-videre”, não querer ver, portanto, olhar de maneira turva, má). O olhar alterado vive do confronto e da comparação, vê a carência e o sofrimento como sendo causados por quem, ao contrário, é feliz, tem sucesso, recebe reconhecimentos, tem riqueza. Assim, a existência é envenenada pelo confronto que faz emergir sem cessar a pergunta: “Porquê a ele sim, e a mim não?”. Vivemos hoje uma estação de incerteza e rancor social, que acaba por suscitar tentações de inveja, e portanto de violência, sobretudo em pessoas “infelizes”: pessoas desafortunadas a quem é negado qualquer tipo de amor humano, desde logo por parte dos pais, ou que não souberam reconhecê-lo; pessoas que podem recriminar-se contra a história familiar ou até contra o destino… Uma só é a certeza, sob a forma de pretensão: tem de se ser feliz a todo o custo. Também não pode ser esquecida a presença dentro do invejoso do narcisista, que espera tudo do exterior, da admiração dos outros. Esta figura substitui com o amor de si a sua dor inconfessável pelo facto de não ser amado e de não saber amar. Tem medo do amor, e por isso sofre de uma impotência que o conduz a ser vingativo e cruel para quantos agravam a imagem que ele tem de si ou lhe apresentam a imagem daquilo que ele gostaria de ser, mas sem o conseguir. Disciplinar o desejo deveria ser uma verdadeira exigência da educação, sobretudo nos jovens, mas na realidade é um exercício necessário em cada idade da vida: então, sim, é possível construir a felicidade. (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)