Fátima continua a ser dos pobres e para os pobres

Na Escritura hebraica, o termo que foi traduzido por misericórdia refere-se a um afeto visceral dos humanos, representado sobretudo na relação da mãe com o seu filho, nomeadamente durante o período de gravidez. Se utilizarmos a metáfora da maternidade – e da relação visceral intrauterina, prolongada na dádiva gratuita da vida da mãe ao filho, sem condições – para falar da misericórdia de Deus, poderíamos dizer que a justiça/misericórdia de Deus é maternal. Tratar-se-ia do rosto da sua «maternidade» – que não coincide com Maria, embora seja por esta mediado, mas também por todas as mães humanas, na medida em que correspondem a esta vocação originária. Deus é maternalmente justo, como a mãe é justa para com o seu filho. Ou então, a mãe é maternalmente justa, como Deus é justo para com os humanos. É claro que, como todas as metáforas, esta também apresenta os seus limites. Primeiro, porque nem todas as mães reais corresponderão a esta modalidade misericordiosa da justiça; depois, porque felizmente esta modalidade não se encarna apenas na relação maternal. Em rigor, terá de marcar também a relação paternal – e é assim que nos aparece descrita várias vezes no Evangelho, sobretudo na fundamental parábola do filho pródigo; e, como é óbvio, ela define a relação de fraternidade – que não coincide com a relação de parceria contratual, mas a supera de longe, pois obedece a outro princípio. Em última instância, nela se encontra o modelo da relação inter-humana que salva – precisamente porque é a única relação que pode justificar-nos, para além de qualquer autojustificação. Ora, se a atitude de misericórdia é aquela que define, por excelência, a maternidade e a paternidade – muito para além da pura relação biológica, determinada por uma necessidade natural – então a filiação é aquilo que define o recetor da misericórdia. A humildade do filho, que se assume como uma criança que tudo acolhe da dádiva paternal e maternal, em plena confiança e sem que isso elimine a sua autonomia e a sua liberdade, é o modo como o humano corresponde à dádiva misericordiosa de Deus. Não é inocente, por isso, o facto de o acontecimento de Fátima se basear em três crianças, escolhidas por Deus como destinatárias humanas de uma mensagem, de uma interpelação, em representação de toda a humanidade. Talvez porque é aí que a humanidade está melhor representada Este poderia ser o mais profundo modo de descrever a pobreza evangélica, que é outro nome para a humildade da verdade, para a qualificação da verdadeira condição humana. O acolhimento livre e desinteressado de uma dádiva absolutamente gratuita – como é, por exemplo, a dádiva do perdão – é sem dúvida o mais profundo ato de humildade de um humano. E só um humano verdadeiramente pobre é que é capaz desse ato. A misericórdia de Deus, que é o rosto do seu amor, simbolizado no seu Coração e mediado no Coração de Maria, é o modo primordial da sua relação com os humanos. E a resposta a essa misericórdia, na pobreza do acolhimento daquilo que nos é dado sem ser merecido, é o modo primordial da relação dos humanos com Deus – como foi o caso de Maria, e como ela convoca todos os humanos a ser. Por isso, a misericórdia de Deus só pode ser acolhida pelos pobres. E as crianças são os pobres por excelência, pelo menos neste sentido essencial. Nelas se revela um dos núcleos do próprio Evangelho: «Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus» (Mt 18,3); «Eu te bendigo, ó Pai, porque revelaste estas coisas aos pequeninos e as escondeste aos grandes e poderosos» (Mt 11,25). Há uma relação estreita entre a infância evangélica – que não é infantilismo – e a pobreza evangélica – que não é necessariamente miséria. Ambas significam a capacidade de acolher, em confiança e simplicidade, aquilo que é dado sem ser merecido. E o essencial da existência só pode ser dado sem ser merecido, pois não pode ser conquistado nem produzido. Não é inocente, por isso, o facto de o acontecimento de Fátima se basear em três crianças, escolhidas por Deus como destinatárias humanas de uma mensagem, de uma interpelação, em representação de toda a humanidade. Talvez porque é aí que a humanidade está melhor representada. Como foi assim que ela esteve e continua representada em Maria. Ela foi e é o protótipo do acolhimento do que é dado sem ser merecido, de forma simples e sem pretensões. E Maria, a medidora na simplicidade, a pobre de Israel por excelência, dirige-se aos mais pobres entre os pobres: a três crianças simples, sem grande formação, sem grandes posses, ignoradas e esquecidas numa povoação esquecida na serra. É deveras significativo este acontecimento, só por ser como é. E é revelador de quais são os caminhos de Deus com a humanidade. O cumprimento da promessa pode ser interpretado como atitude de gratidão, da parte de reconhece que lhe foi dado algo imerecido, por puro dom gratuito. Essa é a dimensão da misericórdia – e, da parte dos humanos, da pobreza de quem aceita receber sem merecer Fátima continua a ser dos pobres e para os pobres e os simples. É certo que as coisas se alteraram muito ao longo de cem anos. Como se alterou toda a sociedade, seja em Portugal seja a nível global. Mas isso não invalida que Fátima seja o lugar da simplicidade, mesmo para aqueles que têm posses. Quem não se tornar simples como os pastorinhos não passa de mero espectador, permanecendo fora do santuário, mesmo que esteja dentro das basílicas. Porque, para entrar verdadeiramente, é preciso ser-se pobre e estar aberto à misericórdia de Deus que dá – dá apenas, de graça, e não vende. Podemos pensar, à primeira vista, que Fátima se tornou um lugar de negócio, devido, por um lado, a todo o comércio que se amontoou na cidade, também à indústria hoteleira e turística, embora exterior ao santuário; e devido, mais fortemente ainda, ao hábito do pagamento de

Se os outros são maus, tenho de ser bom?!

O que é que fazemos quando alguém, que está por perto, tem uma atitude péssima e reveladora de mau carácter? O que devemos dizer a uma pessoa que prefere prejudicar os outros para ficar bem em todas as fotografias? Até que ponto é desejável ignorar alguém que se gaba das maldades e mesquinhices que vai espalhando enquanto passa? Há vários tipos de respostas a estas questões. Vários tipos de caminhos. Quase nenhum deles é fácil ou milagroso o suficiente para apagar a capacidade que alguém tem de fazer mal. De preferir não amar. A primeira opção é a de ignorar. Eu vejo que alguém está a ser prejudicado e, ainda que compreenda o que está a acontecer, calo-me. Baixo a cabeça. Finjo que não vejo e, às vezes, até sou capaz de atirar um sorriso ao de leve, para não me comprometer e para não me antipatizar com aquela pessoa. No entanto, o perigo de ignorar (essa e qualquer outra atitude) é muito claro: se eu ignoro não estou a protestar, não estou a dizer que não concordo, não estou a mostrar a minha opinião em relação ao assunto. Assim, de alguma forma, estou a validar o que alguém fez ou decidiu fazer (ainda que não me sinta bem com isso). A segunda opção possível é a de mostrar à pessoa que reparámos no que ela fez. Dizer algo leve o suficiente para ser subtil, mas claro o suficiente para ser “eficaz”. Talvez lançar uma pergunta desafiadora… ou deixar uma pergunta no ar: “Não sejas assim. Já viste se eu te fizesse isso a ti? Como é que tu ficavas?” Se eu conseguir “cortar” o eco da atitude da pessoa que a protagoniza, vou desarrumá-la por um instante. Fazê-la pensar. Recuar. Colocá-la no lado de lá. Claro. É muito mais fácil optar pela primeira opção e não ter problemas. Mas a segunda opção terá mais frutos. Mais flores. Mais resultados futuros. Não sejamos hipócritas. Sabemos que nem sempre teremos a disponibilidade mental para “obrigar” os outros a pensar no mal que estão a fazer. Muitas vezes, seremos tentados a pensar: se ele ou ela fazem isto tudo e não têm consequências ou não são chamados à atenção, tenho eu que ser exemplo? Não me parece justo. Além disso, esse raciocínio vai fazer-nos justificar as maldades que fizermos depois. Qual é o caminho, então? Ser o avesso da maldade. Ser exatamente o oposto do que a maioria vai escolher, por ser mais fácil. Se os outros são maus, tenho de ser bom? Tenho. Tens. Temos. Do bem é que nasce tudo. (© iMissio, 2020)

O que é um gesto de amor?

O amor exige-nos que não sejamos egoístas nem orgulhosos, pelo que a primeira das condições para uma obra de amor é que ela tenha apenas o outro em vista. Nunca devemos usar o outro para nos exibirmos, nem mesmo para nós mesmos. A vaidade é um vício de quem procura aprovação no olhar dos outros e deseja que pensem bem a seu respeito. Criar esta cortina de ilusão é algo muito comum em quem não tem nada para mostrar. O orgulho é outro vício de quem se considera superior aos outros. É um caminho para a desgraça, porque o orgulhoso anda sempre sozinho. Os nossos gestos de amor não devem servir para impressionar alguém; devem ser um movimento de generosidade que leva algo bom de nós ao outro. Amar é dar-se, entregar o melhor de nós, para o bem de quem amamos. O amor constrói-se com pequenas ações, não com gestos grandiosos e corajosos. A sua grandeza reside na subtileza das escolhas simples e corajosas – porque se acredita que o caminho é longo e tem de se fazer dia a dia, todos os dias, cada dia de forma diferente. Qualquer gesto de amor, por mais pequeno que pareça, é grande. O amor é atento. Quando só a felicidade do outro me faz feliz, preciso saber em que posso ajudá-lo de forma concreta. E não há dois dias iguais. Talvez haja momentos em que é preciso fazer algo maior, mas nos demais a presença e o silêncio são tão simples quanto valiosos e… difíceis de cumprir. O sentido da vida consiste em encontrar e percorrer o caminho que sai de mim e me leva ao coração do outro, para que à janela do seu íntimo eu veja o mundo através do seu olhar. E em abrir-me ao outro com confiança… para que, ultrapassados os meus medos, o amor transforme as nossas duas fragilidades numa força capaz de lutar todos os dias por uma só felicidade, maior do que nós dois! (José Luís Nunes Martins)

Tudo está relacionado com tudo

Na última crónica citei o Papa Francisco na celebração de 27 de Março, onde nos chamou à atenção esta realidade: viajamos todos na mesma embarcação. Muitos acreditam ou defendem que não viajamos no mesmo barco, apesar de enfrentarmos a mesma tempestade. A verdade é que a imagem evangélica evocada por Francisco é eficaz e simbólica. Ela sintetiza a condição sem precedentes em que se encontra a nossa humanidade. Todos os problemas assumiram dimensão planetária. E tudo está relacionado com tudo. Mas o nosso tempo é marcado por um paradoxo: quanto mais interdependentes estamos, menos solidários somos. De facto e apesar de vivermos num mercado global ainda não fomos capazes de despertar e optar por uma verdadeira colaboração entre povos. Esse paradoxo agrava e gera uma fragilidade generalizada. E Francisco compreendeu bem que, esta consciência da fragilidade comum, pode ajudar a assumir a fraternidade universal como princípio político e económico. Neste sentido, realmente estamos todos no mesmo barco. A crise da pandémica revelou que, na realidade, a mais profunda crise do nosso tempo é uma crise cultural. Ou seja, a dificuldade, por parte da tecnocracia dominante, de conceber a complexidade dos problemas. A crise da saúde deixa claro o quão complexos, entrelaçados e indissociáveis, são os fios da globalização biológica, antropológica, económica, política, psicológica, espiritual… A especialização, a tecnocracia trouxe muito conhecimento. Mas esse conhecimento é incapaz de compreender os problemas globais, que são compostos de muitas dimensões entrelaçadas. A crise mostra que não pode haver respostas técnicas únicas para problemas isolados. A Interdependência significa que vivemos num ecumenismo, ou seja, torna o mundo verdadeiramente um: a casa comum. “De Wuhan, rapidamente chegou a todo o mundo.” O Papa Francisco destacou com clareza que os problemas e as crises do nosso tempo obrigam-nos a pensar num horizonte planetário e de longo prazo, não podemos ter uma visão para resultados imediatos. O Santo Padre, há cinco anos, com a Laudato Si tinha dito claramente: “tudo está conectado”, “tudo está em relação” … Precisamos de uma verdadeira fraternidade! Uma fraternidade fundada no sentimento de pertença recíproca. Até agora temos vivido, de uma forma geral, em comunidades “fechadas”, enquanto países ou nações. A fraternidade dentro da comunidade, criou um inimigo potencial: aquele que está fora da minha comunidade. Com esta pandemia e, creio, pela primeira vez, a fraternidade pode tornar-se concretamente universal. Na verdade, a humanidade encontra-se numa condição sem precedentes: tornou-se capaz de se autodestruir, isto é, de suicídio, com as armas nucleares, com a exploração do meio ambiente que reduz a biodiversidade e muda o clima. E essa possibilidade, esse perigo, de repente transformou-nos a todos como uma comunidade com o mesmo destino: ou nos perdemos juntos ou nos salvamos juntos. Por esta razão volto às palavras de Francisco naqueles dias de terror e confinamento. Depois de ver a tentativa de voltar à vida dita de normal, interrogo-me se percebemos a nossa realidade e necessidade de uma fraternidade universal…? (© iMissio, 2020)

O sexo e a comida são queridos de Deus

Para o Papa o prazer “é simplesmente divino” e a Igreja, embora condene o “prazer desumano e vulgar”, sempre aceitou “o prazer humano, sóbrio e moral”. Desta forma respondeu à provocação de Carlo Petrini, que tinha dito que a “Igreja Católica sempre anulou o prazer, como se fosse algo a evitar”. Para o Papa, “o prazer de comer existe para nos manter saudáveis pela alimentação, tal como o prazer sexual existe para que o amor seja mais bonito e para garantir a perpetuação das espécies”. Constata assim uma “moralidade beata” que leva a Igreja a reprovar o prazer devido “a uma má interpretação da mensagem cristã”. Tem razão o Papa: a desvalorização do prazer deveu-se à influência platónica que inquinou a antropologia cristã. Para o platonismo a alma era pura, bela, perfeita, enquanto o corpo era pecaminoso e sujo. O corpo seria o cárcere da alma. Nesta perspetiva, devia rejeitar-se o prazer e mortificar o corpo para libertar a alma dos apelos da natureza. Para um cristão que acredita num Deus incarnado, sem separar o homem de Deus, não faz sentido tal dicotomia. E, menos ainda, o antagonismo de um elemento para com o outro. Na perspetiva cristã, o homem é um espírito incarnado. Para além disso, o cristão acredita que Deus criou o homem e a mulher sexuados e chamados a viver a sexualidade de forma sadia. Por isso, na moral cristã será tão condenável fazer da sexualidade um tabu, ou algo que é sempre pecaminoso, como cair na sua banalização ou idolatrização. Nesta medida, as afirmações do Papa sobre o prazer sexual e o da refeição têm um significado mais profundo do que à primeira vista possa parecer. Libertam a fé cristã de uma conceção filosófica do ser humano que não se coaduna com a pregação de Jesus e devolvem à natureza a dignidade conferida pelo Criador. (© iMissio, 2020)