Oração dos dias incertos

Nestes dias incertos, peço-Te que me ajudes a ter mais confiança. A acreditar mais nas minhas forças e nos meus talentos. Que eu escute mais e melhor os outros que sofrem de dificuldades, e traga eu para a minha vida o que lhes custou tanto a aprender. Nestes tempos inconstantes, peço-Te que tenhas ainda mais paciência comigo, uma vez que ando perdido e com muita dificuldade em encontrar por onde seguir para diante. Que eu tenha a paz suficiente para ver mais longe, para escolher o caminho que me eleva e que, apesar de todas as dúvidas, eu encontre forma de seguir adiante, passo a passo. Nestas noites sem muito sono, peço-Te a alegria profunda de saber que a vida é um dom maravilhoso, apesar de tudo, e que, ainda que os males pareçam sem fim, eu encontre a esperança e a paciência capazes de lhes fazer frente. Que eu seja capaz de sorrir, mesmo quando as lágrimas estiverem a lavar a tristeza do meu rosto. Que eu seja forte ao ponto de não desistir de mim, mesmo quando isso me parecer o mais certo. Nestes dias cheios de nadas, em que pouco parece ter importância, peço-Te que me enchas o coração e a imaginação de sonhos, para que, como se fosse uma criança, me esqueça do passado e me despreocupe com o futuro, concentrando-me em encontrar as minhas alegrias de cada dia. Que eu consiga chorar e rir com a mesma pureza e verdade, sentindo sempre tudo e brincando muito, sozinho e com outros, sem nunca me considerar mais crescido, maduro ou melhor do que qualquer outra pessoa. Nestes afastamentos das nossas vidas, onde a tranquilidade parece ser impossível, peço-Te que me fortaleça para que não fale quando não é preciso, nem me resguarde no silêncio quando for tempo de falar. Por mais que me doa fazer o que é melhor. Que eu ensine a mim mesmo que, se quase nada é certo, isso não significa que eu seja insignificante, sem sentido ou sem valor. Pelo contrário, quer dizer que sou chamado a ser sólido e forte para que no mar da instabilidade eu possa ser um porto seguro, um farol útil e uma brisa suave, capaz de inspirar os que estão a perder-se de si mesmos. Nestes tempos sem chão, peço-Te que ilumines os meus caminhos, para que possa escolher melhor e assim alcançar a paz que busco. Que eu seja capaz de amar os outros, aceitando-os como são, sem os julgar, lutando ao seu lado pelo que lhes és essencial. Sem buscar outra certeza que não saber que sou um instrumento importante para a felicidade daqueles com quem me cruzo na vida. Assim seja. (José Luís Nunes Martins)
Todos irmãos
Este sábado, o Papa está em Assis para uma operação carregada de simbolismo: assinar junto ao túmulo de São Francisco a sua encíclica “Omnes Fratres” (“Todos irmãos”). É uma espécie de dívida de gratidão que se salda desta forma, pois como explica o papa “este santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria, que me inspirou a escrever a encíclica ‘Laudato Si’, novamente me motiva a dedicar esta nova encíclica à fraternidade e à amizade social”. O que podemos, desde já, desejar é que este texto urgente e inovador encontre leitorados amplos, dentro e fora da Igreja, capazes de refletir em profundidade o significado dos seus desafios. Isto porque a reflexão acerca da fraternidade tem sido sistematicamente adiada. Da tríade liberdade, igualdade e fraternidade, as nossas sociedades integraram as duas primeiras, mas deixaram de fora a fraternidade como se fosse um assunto estritamente privado, sobre o qual não é possível construir um consenso social. Mas, como diz o Papa Francisco, sem a fraternidade, a visão da liberdade e da igualdade correm o risco de se tornarem inconclusivas e abstratas. O reconhecimento da fraternidade é, por isso, uma das tarefas atuais mais prementes. Esta proposta sobre a fraternidade universal, Bergoglio situa-a na continuidade do documento sobre a fraternidade humana para a paz mundial e a convivência comum, assinado conjuntamente com o grande imã Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dhabi, em fevereiro de 2019. A encíclica perspetiva assim o tema da fraternidade a partir da tradição católica, mas pretende claramente ultrapassar fronteiras, abrindo-se em diálogo com outras tradições. E além de Ahmad Al-Tayyeb são nomeadas, entre outras, as inspirações de Martin Luther King, Desmond Tutu e Mahatma Gandhi. Do mesmo modo, no que respeita aos destinatários desta encíclica, que corporiza “um novo sonho de fraternidade e de amizade social que não se fique apenas pelas palavras”, o Papa deseja que ela se torne um ponto de diálogo aberto com todas as pessoas de boa vontade. Ou nos constituímos como um “nós” que habita a Casa comum que é a terra ou veremos apenas crescer a guerra de interesses e egoísmos que nos põe a “todos contra todos” O presente texto coloca-se claramente na linhagem das chamadas “encíclicas sociais”, que abordam diretamente as problemáticas que afligem as sociedades, iluminando-as com um património doutrinal que, desde a célebre encíclica de Leão XIII, “Rerum Novarum” (1891), se tem vindo sempre a consolidar. A maior parte dos papas do século XX apresentou encíclicas sociais e alguns fizeram-no mais de uma vez, como foi o caso de João XXIII (2), Paulo VI (2) ou de João Paulo II (3). Também o Papa Francisco bisa com este novo e incisivo texto que revisita, em chave de atualidade, temas recorrentes da doutrina social da Igreja: os direitos da pessoa humana, a cidadania, o bem comum, o trabalho, os modelos de desenvolvimento, a destinação universal dos bens, a propriedade, a construção da justiça e da paz, as migrações, a regulação económica, a reabilitação da política, a condenação do racismo, a ecologia, o avanço tecnológico, os reptos que se colocam à informação na era digital, etc. Francisco sabe bem os riscos que corre propondo uma encíclica sobre uma categoria que (ainda) não tem estatuto político. Em diversos momentos ele alerta para que o seu discurso não seja treslido como uma utopia bem intencionada, porém impraticável. Ora, aqui joga-se com coragem profética exatamente o contrário: a certeza de que ou nos constituímos como um “nós” que habita a casa comum que é a terra ou veremos apenas crescer a guerra de interesses e egoísmos que nos põe a “todos contra todos”. Quem tem ouvidos para ouvir, oiça este apelo “a repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência”. (in Jornal Expresso)
Fátima continua a ser dos pobres e para os pobres

Na Escritura hebraica, o termo que foi traduzido por misericórdia refere-se a um afeto visceral dos humanos, representado sobretudo na relação da mãe com o seu filho, nomeadamente durante o período de gravidez. Se utilizarmos a metáfora da maternidade – e da relação visceral intrauterina, prolongada na dádiva gratuita da vida da mãe ao filho, sem condições – para falar da misericórdia de Deus, poderíamos dizer que a justiça/misericórdia de Deus é maternal. Tratar-se-ia do rosto da sua «maternidade» – que não coincide com Maria, embora seja por esta mediado, mas também por todas as mães humanas, na medida em que correspondem a esta vocação originária. Deus é maternalmente justo, como a mãe é justa para com o seu filho. Ou então, a mãe é maternalmente justa, como Deus é justo para com os humanos. É claro que, como todas as metáforas, esta também apresenta os seus limites. Primeiro, porque nem todas as mães reais corresponderão a esta modalidade misericordiosa da justiça; depois, porque felizmente esta modalidade não se encarna apenas na relação maternal. Em rigor, terá de marcar também a relação paternal – e é assim que nos aparece descrita várias vezes no Evangelho, sobretudo na fundamental parábola do filho pródigo; e, como é óbvio, ela define a relação de fraternidade – que não coincide com a relação de parceria contratual, mas a supera de longe, pois obedece a outro princípio. Em última instância, nela se encontra o modelo da relação inter-humana que salva – precisamente porque é a única relação que pode justificar-nos, para além de qualquer autojustificação. Ora, se a atitude de misericórdia é aquela que define, por excelência, a maternidade e a paternidade – muito para além da pura relação biológica, determinada por uma necessidade natural – então a filiação é aquilo que define o recetor da misericórdia. A humildade do filho, que se assume como uma criança que tudo acolhe da dádiva paternal e maternal, em plena confiança e sem que isso elimine a sua autonomia e a sua liberdade, é o modo como o humano corresponde à dádiva misericordiosa de Deus. Não é inocente, por isso, o facto de o acontecimento de Fátima se basear em três crianças, escolhidas por Deus como destinatárias humanas de uma mensagem, de uma interpelação, em representação de toda a humanidade. Talvez porque é aí que a humanidade está melhor representada Este poderia ser o mais profundo modo de descrever a pobreza evangélica, que é outro nome para a humildade da verdade, para a qualificação da verdadeira condição humana. O acolhimento livre e desinteressado de uma dádiva absolutamente gratuita – como é, por exemplo, a dádiva do perdão – é sem dúvida o mais profundo ato de humildade de um humano. E só um humano verdadeiramente pobre é que é capaz desse ato. A misericórdia de Deus, que é o rosto do seu amor, simbolizado no seu Coração e mediado no Coração de Maria, é o modo primordial da sua relação com os humanos. E a resposta a essa misericórdia, na pobreza do acolhimento daquilo que nos é dado sem ser merecido, é o modo primordial da relação dos humanos com Deus – como foi o caso de Maria, e como ela convoca todos os humanos a ser. Por isso, a misericórdia de Deus só pode ser acolhida pelos pobres. E as crianças são os pobres por excelência, pelo menos neste sentido essencial. Nelas se revela um dos núcleos do próprio Evangelho: «Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus» (Mt 18,3); «Eu te bendigo, ó Pai, porque revelaste estas coisas aos pequeninos e as escondeste aos grandes e poderosos» (Mt 11,25). Há uma relação estreita entre a infância evangélica – que não é infantilismo – e a pobreza evangélica – que não é necessariamente miséria. Ambas significam a capacidade de acolher, em confiança e simplicidade, aquilo que é dado sem ser merecido. E o essencial da existência só pode ser dado sem ser merecido, pois não pode ser conquistado nem produzido. Não é inocente, por isso, o facto de o acontecimento de Fátima se basear em três crianças, escolhidas por Deus como destinatárias humanas de uma mensagem, de uma interpelação, em representação de toda a humanidade. Talvez porque é aí que a humanidade está melhor representada. Como foi assim que ela esteve e continua representada em Maria. Ela foi e é o protótipo do acolhimento do que é dado sem ser merecido, de forma simples e sem pretensões. E Maria, a medidora na simplicidade, a pobre de Israel por excelência, dirige-se aos mais pobres entre os pobres: a três crianças simples, sem grande formação, sem grandes posses, ignoradas e esquecidas numa povoação esquecida na serra. É deveras significativo este acontecimento, só por ser como é. E é revelador de quais são os caminhos de Deus com a humanidade. O cumprimento da promessa pode ser interpretado como atitude de gratidão, da parte de reconhece que lhe foi dado algo imerecido, por puro dom gratuito. Essa é a dimensão da misericórdia – e, da parte dos humanos, da pobreza de quem aceita receber sem merecer Fátima continua a ser dos pobres e para os pobres e os simples. É certo que as coisas se alteraram muito ao longo de cem anos. Como se alterou toda a sociedade, seja em Portugal seja a nível global. Mas isso não invalida que Fátima seja o lugar da simplicidade, mesmo para aqueles que têm posses. Quem não se tornar simples como os pastorinhos não passa de mero espectador, permanecendo fora do santuário, mesmo que esteja dentro das basílicas. Porque, para entrar verdadeiramente, é preciso ser-se pobre e estar aberto à misericórdia de Deus que dá – dá apenas, de graça, e não vende. Podemos pensar, à primeira vista, que Fátima se tornou um lugar de negócio, devido, por um lado, a todo o comércio que se amontoou na cidade, também à indústria hoteleira e turística, embora exterior ao santuário; e devido, mais fortemente ainda, ao hábito do pagamento de
Se os outros são maus, tenho de ser bom?!

O que é que fazemos quando alguém, que está por perto, tem uma atitude péssima e reveladora de mau carácter? O que devemos dizer a uma pessoa que prefere prejudicar os outros para ficar bem em todas as fotografias? Até que ponto é desejável ignorar alguém que se gaba das maldades e mesquinhices que vai espalhando enquanto passa? Há vários tipos de respostas a estas questões. Vários tipos de caminhos. Quase nenhum deles é fácil ou milagroso o suficiente para apagar a capacidade que alguém tem de fazer mal. De preferir não amar. A primeira opção é a de ignorar. Eu vejo que alguém está a ser prejudicado e, ainda que compreenda o que está a acontecer, calo-me. Baixo a cabeça. Finjo que não vejo e, às vezes, até sou capaz de atirar um sorriso ao de leve, para não me comprometer e para não me antipatizar com aquela pessoa. No entanto, o perigo de ignorar (essa e qualquer outra atitude) é muito claro: se eu ignoro não estou a protestar, não estou a dizer que não concordo, não estou a mostrar a minha opinião em relação ao assunto. Assim, de alguma forma, estou a validar o que alguém fez ou decidiu fazer (ainda que não me sinta bem com isso). A segunda opção possível é a de mostrar à pessoa que reparámos no que ela fez. Dizer algo leve o suficiente para ser subtil, mas claro o suficiente para ser “eficaz”. Talvez lançar uma pergunta desafiadora… ou deixar uma pergunta no ar: “Não sejas assim. Já viste se eu te fizesse isso a ti? Como é que tu ficavas?” Se eu conseguir “cortar” o eco da atitude da pessoa que a protagoniza, vou desarrumá-la por um instante. Fazê-la pensar. Recuar. Colocá-la no lado de lá. Claro. É muito mais fácil optar pela primeira opção e não ter problemas. Mas a segunda opção terá mais frutos. Mais flores. Mais resultados futuros. Não sejamos hipócritas. Sabemos que nem sempre teremos a disponibilidade mental para “obrigar” os outros a pensar no mal que estão a fazer. Muitas vezes, seremos tentados a pensar: se ele ou ela fazem isto tudo e não têm consequências ou não são chamados à atenção, tenho eu que ser exemplo? Não me parece justo. Além disso, esse raciocínio vai fazer-nos justificar as maldades que fizermos depois. Qual é o caminho, então? Ser o avesso da maldade. Ser exatamente o oposto do que a maioria vai escolher, por ser mais fácil. Se os outros são maus, tenho de ser bom? Tenho. Tens. Temos. Do bem é que nasce tudo. (© iMissio, 2020)
O que é um gesto de amor?

O amor exige-nos que não sejamos egoístas nem orgulhosos, pelo que a primeira das condições para uma obra de amor é que ela tenha apenas o outro em vista. Nunca devemos usar o outro para nos exibirmos, nem mesmo para nós mesmos. A vaidade é um vício de quem procura aprovação no olhar dos outros e deseja que pensem bem a seu respeito. Criar esta cortina de ilusão é algo muito comum em quem não tem nada para mostrar. O orgulho é outro vício de quem se considera superior aos outros. É um caminho para a desgraça, porque o orgulhoso anda sempre sozinho. Os nossos gestos de amor não devem servir para impressionar alguém; devem ser um movimento de generosidade que leva algo bom de nós ao outro. Amar é dar-se, entregar o melhor de nós, para o bem de quem amamos. O amor constrói-se com pequenas ações, não com gestos grandiosos e corajosos. A sua grandeza reside na subtileza das escolhas simples e corajosas – porque se acredita que o caminho é longo e tem de se fazer dia a dia, todos os dias, cada dia de forma diferente. Qualquer gesto de amor, por mais pequeno que pareça, é grande. O amor é atento. Quando só a felicidade do outro me faz feliz, preciso saber em que posso ajudá-lo de forma concreta. E não há dois dias iguais. Talvez haja momentos em que é preciso fazer algo maior, mas nos demais a presença e o silêncio são tão simples quanto valiosos e… difíceis de cumprir. O sentido da vida consiste em encontrar e percorrer o caminho que sai de mim e me leva ao coração do outro, para que à janela do seu íntimo eu veja o mundo através do seu olhar. E em abrir-me ao outro com confiança… para que, ultrapassados os meus medos, o amor transforme as nossas duas fragilidades numa força capaz de lutar todos os dias por uma só felicidade, maior do que nós dois! (José Luís Nunes Martins)