Tudo está relacionado com tudo

Na última crónica citei o Papa Francisco na celebração de 27 de Março, onde nos chamou à atenção esta realidade: viajamos todos na mesma embarcação. Muitos acreditam ou defendem que não viajamos no mesmo barco, apesar de enfrentarmos a mesma tempestade. A verdade é que a imagem evangélica evocada por Francisco é eficaz e simbólica. Ela sintetiza a condição sem precedentes em que se encontra a nossa humanidade. Todos os problemas assumiram dimensão planetária. E tudo está relacionado com tudo. Mas o nosso tempo é marcado por um paradoxo: quanto mais interdependentes estamos, menos solidários somos. De facto e apesar de vivermos num mercado global ainda não fomos capazes de despertar e optar por uma verdadeira colaboração entre povos. Esse paradoxo agrava e gera uma fragilidade generalizada. E Francisco compreendeu bem que, esta consciência da fragilidade comum, pode ajudar a assumir a fraternidade universal como princípio político e económico. Neste sentido, realmente estamos todos no mesmo barco. A crise da pandémica revelou que, na realidade, a mais profunda crise do nosso tempo é uma crise cultural. Ou seja, a dificuldade, por parte da tecnocracia dominante, de conceber a complexidade dos problemas. A crise da saúde deixa claro o quão complexos, entrelaçados e indissociáveis, são os fios da globalização biológica, antropológica, económica, política, psicológica, espiritual… A especialização, a tecnocracia trouxe muito conhecimento. Mas esse conhecimento é incapaz de compreender os problemas globais, que são compostos de muitas dimensões entrelaçadas. A crise mostra que não pode haver respostas técnicas únicas para problemas isolados. A Interdependência significa que vivemos num ecumenismo, ou seja, torna o mundo verdadeiramente um: a casa comum. “De Wuhan, rapidamente chegou a todo o mundo.” O Papa Francisco destacou com clareza que os problemas e as crises do nosso tempo obrigam-nos a pensar num horizonte planetário e de longo prazo, não podemos ter uma visão para resultados imediatos. O Santo Padre, há cinco anos, com a Laudato Si tinha dito claramente: “tudo está conectado”, “tudo está em relação” … Precisamos de uma verdadeira fraternidade! Uma fraternidade fundada no sentimento de pertença recíproca. Até agora temos vivido, de uma forma geral, em comunidades “fechadas”, enquanto países ou nações. A fraternidade dentro da comunidade, criou um inimigo potencial: aquele que está fora da minha comunidade. Com esta pandemia e, creio, pela primeira vez, a fraternidade pode tornar-se concretamente universal. Na verdade, a humanidade encontra-se numa condição sem precedentes: tornou-se capaz de se autodestruir, isto é, de suicídio, com as armas nucleares, com a exploração do meio ambiente que reduz a biodiversidade e muda o clima. E essa possibilidade, esse perigo, de repente transformou-nos a todos como uma comunidade com o mesmo destino: ou nos perdemos juntos ou nos salvamos juntos. Por esta razão volto às palavras de Francisco naqueles dias de terror e confinamento. Depois de ver a tentativa de voltar à vida dita de normal, interrogo-me se percebemos a nossa realidade e necessidade de uma fraternidade universal…? (© iMissio, 2020)

O sexo e a comida são queridos de Deus

Para o Papa o prazer “é simplesmente divino” e a Igreja, embora condene o “prazer desumano e vulgar”, sempre aceitou “o prazer humano, sóbrio e moral”. Desta forma respondeu à provocação de Carlo Petrini, que tinha dito que a “Igreja Católica sempre anulou o prazer, como se fosse algo a evitar”. Para o Papa, “o prazer de comer existe para nos manter saudáveis pela alimentação, tal como o prazer sexual existe para que o amor seja mais bonito e para garantir a perpetuação das espécies”. Constata assim uma “moralidade beata” que leva a Igreja a reprovar o prazer devido “a uma má interpretação da mensagem cristã”. Tem razão o Papa: a desvalorização do prazer deveu-se à influência platónica que inquinou a antropologia cristã. Para o platonismo a alma era pura, bela, perfeita, enquanto o corpo era pecaminoso e sujo. O corpo seria o cárcere da alma. Nesta perspetiva, devia rejeitar-se o prazer e mortificar o corpo para libertar a alma dos apelos da natureza. Para um cristão que acredita num Deus incarnado, sem separar o homem de Deus, não faz sentido tal dicotomia. E, menos ainda, o antagonismo de um elemento para com o outro. Na perspetiva cristã, o homem é um espírito incarnado. Para além disso, o cristão acredita que Deus criou o homem e a mulher sexuados e chamados a viver a sexualidade de forma sadia. Por isso, na moral cristã será tão condenável fazer da sexualidade um tabu, ou algo que é sempre pecaminoso, como cair na sua banalização ou idolatrização. Nesta medida, as afirmações do Papa sobre o prazer sexual e o da refeição têm um significado mais profundo do que à primeira vista possa parecer. Libertam a fé cristã de uma conceção filosófica do ser humano que não se coaduna com a pregação de Jesus e devolvem à natureza a dignidade conferida pelo Criador. (© iMissio, 2020)

Ama quem precisa, não quem merece

Abre-te à luz que te habita, para que o teu caminho se ilumine. Sê mais transparente, não te enchas tanto de ti. A luz de ti mesmo precisa de um espaço para brilhar. Oferece-lhe um coração grande, com poucas coisas – quase vazio. Aceita o dom do amor e serás uma fonte de bem para outros. Nunca recuses o amor, ama. Nunca recuses o amor, deixa-te amar. Não há nada pior do que rejeitar o que te dá sentido à tua vida e te dignifica. Não és o teu nome, nem a tua família, profissão, dinheiro, poder, posição social ou mesmo as tuas capacidades. Tu és aquilo que te diferencia dos outros. Crescemos de cada vez que não acumulamos, enriquecemos de cada vez que somos generosos. A felicidade não é acrescentar coisas, é partilhar com quem não tem quem o valorize pelo que é! Não te deixes atrofiar pelos teus orgulhos e egoísmos. Lembra-te de que amar é um dom, não é um prémio. Ninguém o merece, mas todos precisam dele, muito. Tu és maior, e mais importante, do que todos os teus erros e fracassos. Os outros são iguais a ti: maiores e mais importantes do que todos os seus erros e fracassos. Levanta-te, anda e ama. (José Luís Nunes Martins)

Elogio do perdão

Volto ao perdão e ao desconfinamento interior e exterior que este nos oferece. Creio que todos nós temos zonas escuras que precisam de luz. De muita claridade. Quantas vezes essas geografias interiores são acumulação de rancores, vinganças, azedumes que armazenamos ao longo do tempo. Carregar esses sentimentos ao longo de uma vida é como querer levar às costas um saco de lixo que teimamos em não despejar. A nossa vulnerabilidade e a firme certeza de que somos imperfeitos seria um bom ponto de partida para o acolhimento do outro como um igual e em processo de construção. Mas nem sempre assim é. Somos humanidade e, por isso mesmo, começada e não acabada. Precária, vulnerável… ainda que divinamente sonhada! Perdoar continua a ser uma excelente forma de desconfinar, sem que esse acto de liberdade interior nos coloque na mesma relação que anteriormente tínhamos com a pessoa perdoada, que muitas das vezes somos nós próprios. Os recomeços exigem sempre uma limpeza, seja ela externa ou interna. As mudanças que se seguem a escolhas discernidas, maturadas, deveriam ser para nós um momento de reconciliação com o nosso passado. E com o nosso presente. Caminhamos com pedras nos sapatos. Grandes. Atirámo-las a nos próprios e a outros. Há um certo prazer masoquista em afirmar “eu perdoo, mas não esqueço”! Tornamo-nos reféns da pessoa que nos fez mal, porque lhe damos espaço para que continue em nós. Dentro de nós. Quem nos diz a nós que a memória vai sempre lá estar? Até onde a queremos purificar? Até onde me quero libertar? Creio que se em algum dia da nossa vida fizermos a experiência profunda de sermos perdoados, daríamos saltos de felicidade pela decisão de perdoarmos. A nós. Aos outros. E o perdão, é sempre o ganho de nós próprios e da nossa inteireza. (© iMissio, 2020)

Recomeçar custa?…Ai se custa…

Recomeçar!… Recomeçar é um verbo que não gostamos muito de usar. Recomeçar parece implicar que falhamos e é necessário voltar ao início… Mas esta é a realidade humana quer queiramos ou quer não. Tantas, mas tantas vezes é-nos pedido para recomeçar. Tantas, mas tantas vezes, somos nós próprios que gostaríamos de voltar ao ponto de partida para ter um outro fim aquilo que iniciamos outrora… Como professor, vejo-me a recomeçar uma outra vez. E custa… Aí se custa… Ao recomeçar parece que falhamos algures… No entanto, é a marca mais humana que podemos enunciar. Como humanos, como imperfeitos, como finitos temos que tantas e tantas vezes recomeçar… Como professor, deparo-me com um novo início. Não é novo. Novos alunos a “juntarem-se” aos “velhos”, quando assim é, é o normal. Mas para estes novos é necessário recomeçar. Este ano a novidade está (sim, esta é a grande novidade), na situação pandémica que vivemos. Há um tempo antes do coronavírus e um tempo depois. Se a sociedade ou as pessoas a partir de agora forem melhores, mais responsáveis e mais civilizadas, acredito que será graças à escola. É o campo de treino onde os fundamentos do conhecimento são ensinados; o lugar onde acontecem verdadeiras reuniões entre pares. Depois da tragédia inicial do coronavírus, teremos que pensar na génese, no início de tudo. E por onde começar a construção de novo? Não será a escola depois da família? Nietzsche afirmou que a escola tem a função de formar não apenas funcionários, mas também cidadãos. Os funcionários do Estado precisam de informação e de competências, mas para formar os cidadãos precisamos de conhecimentos, de uma visão, mas também de sentido do destino individual e coletivo das pessoas. Para isso, o ensino à distância que tivemos de março até junho, não é suficiente. Devemos retomar as aulas presenciais. As crianças e os jovens precisam voltar a estar juntos porque o ensino não é apenas um discurso vertical que passa do professor para o aluno, mas é também horizontal, mútuo e recíproco entre pares. Como professor coloco o foco no ensino e nos alunos, porém, se pensarmos no nosso quotidiano perceberemos que a vida se vive no relacionamento com o outro: «Na verdade, onde estão dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles». Mt 18, 20. A pandemia e o coronavírus é uma realidade, mas já antes estávamos nós e os nossos irmãos. Tal como na escola, temos enquanto sociedade, ter a coragem de saber vivermos uns com os outros; socorrermos uns aos outros e não ficarmos “trancados” nos nossos umbigos. Aí não está Deus. Tenhamos a coragem de RECOMEÇAR a viver. (© iMissio, 2020.)