De que serve o talento se não houver confiança?

Não nascemos confiantes. Tornamo-nos confiantes, à medida que vamos arriscando mais, e nos dispomos a aceitar, com a mesma naturalidade, tanto o sucesso como o ridículo. Posso ter competência, inteligência, força, vontade de aprender e experiência, mas se me faltar a confiança, não consigo por a render nenhuma das virtudes anteriores. O medo da opinião dos outros é algo que cresce à medida que lhe vamos dando espaço. A verdade é que não há uma só pessoa à face da terra que não cometa erros, que não faça coisas ridículas, que não tenha ideias idiotas. No entanto, como todos nos esforçamos por não fazer transparecer essa face de nós, há muitos que acreditam que são os únicos ridículos no mundo! Cheios de vergonha do julgamento dos outros, escondem os seus talentos até de si mesmos. A verdade é que ninguém é normal! E isso é algo fantástico. É difícil imaginar aqueles que admiro no dia a dia a terem os mesmos problemas que eu. Dos mais comuns aos mais complicados. Como se fossem perfeitos, e eu não. Tendemos a desconsiderar aqueles com quem convivemos… uma vez que conhecemos os seus defeitos e vícios, temos certeza de que não são dignos de ser apreciados como aqueles outros que nos maravilham, quando estes, na verdade, talvez deixassem de ter esse efeito se os conhecemos um pouco melhor. A maturidade que devemos alcançar é um nível de compreensão em que não consideramos ninguém como perfeito nem como miserável. Cada um de nós é chamado lançar-se na construção da história. Da sua história e da história de todos. Isso faz-se com os talentos que já temos e com a confiança que decidirmos construir. Exige de ti a paz de confiares nos teus talentos. (José Luís Nunes Martins)
Como viver na incerteza sem fim?
Não conseguimos prever grande parte do nosso futuro. Planeá-lo com inteligência implica deixar uma enorme margem em branco, porque quase tudo pode mudar em pouco tempo. Quase todos gostávamos de controlar o futuro. Mas isso é impossível, por causa da nossa natureza e das circunstâncias em que vivemos. Ninguém pode prever com exatidão o resultado a longo prazo de uma ação sua, ou qual o efeito que uma determinada condição que aparece hoje vai ter no nosso futuro mais distante. Viver é aceitar o desafio de navegar no mar do desconhecimento. Importa ser humilde e acreditar que podemos e devemos decidir o nosso dia a dia, uma coisa de cada vez. Sem a ilusão infantil de querer com uma só ação mudar tudo de uma vez e para sempre. Tudo é possível. Mas isso não significa que o caminho para o que parece impossível seja fácil ou curto. As nossas maiores conquistas consomem-nos tanto que, ao alcançá-las, em vez de glória, sentimos um enorme alívio por termos chegado ao fim dessa nossa luta. Nada é certo. O mundo é muito mais complexo do que alguma vez poderemos compreender. Os outros seres humanos não são meros figurantes da minha vida, são tão dignos como eu de estar aqui e de serem protagonistas da sua e da minha existência, pelo que, as decisões que fazem o meu futuro não são apenas as minhas. Somos pequenos e frágeis. Quando não aceitamos com humildade os nossos limites, caímos com enorme facilidade em desequilíbrios, porque ao querer tudo de uma vez, vamos para os excessos de onde… é fácil cair no abismo. É preciso desapegarmo-nos da vontade de controlar tudo. Até porque, se o fizéssemos, seria uma tragédia maior do que podemos imaginar! Nenhum de nós é o centro do mundo e isso é uma excelente notícia! Nenhuma vida está isenta de males, mas há sempre bens em seu redor. Em vez de vivermos focados no incerto e no mal que existe e naquele que ainda pode chegar, devíamos admirar o bem que nos rodeia e nunca deixar de sonhar! Acordando cedo para trabalhar pelo que bem que queremos. Aceita a vida como ela é. Procura o melhor lugar para onde dares o próximo passo, sempre. Pouco importa que estejas no fundo do poço ou no cimo da montanha mais alta. Qual é a melhor coisa que podes fazer a seguir a ler este texto? Faz isso. (José Luís Nunes Martins)
Um dia esta dor vai nos ser útil

Não saímos ainda da pandemia, a verdade é essa. E como não a podemos remover da história concreta deste nosso presente com a facilidade que desejaríamos, a tentação atual é a de a removermos dentro de nós, ensaiando uma espécie de negação. A realidade é o que é, sabemo-lo bem, mas passamos a interpretá-la de uma forma mais aceitável para nós. As imagens do formigueiro humano que desagua nas praias (se não numa zona do país, noutra) ou se estende prazenteiramente pelas esplanadas mostra essa necessidade irreprimível de consolação. Não se trata de negar os factos ou de distorcer os números. Trata-se sim de uma operação que pode parecer de pura sobrevivência interior: expostos por um tempo longo a uma dura prova, a dada altura preferimos simplesmente bloquear o impacto da situação externa no nosso mundo emocional. É um mecanismo recorrente de distanciamento do real, que permite um certo alívio. Não queremos ouvir falar do problema ou tentamos reorientar a ameaça que ele representa, convencendo-nos que os grupos de risco são sempre os outros. Em parte foi isso que aconteceu quando se dizia que as pessoas de risco eram unicamente os idosos ou que existiam regiões mais imunes do que outras. As experiências dolorosas podem tornar-se oportunidades para redescobrir que a vulnerabilidade também nos ensina coisas de que precisamos. Mas é necessário que não enxotemos depressa demais essas experiências para debaixo do tapete. Mais do que fugas precisamos de resiliência, conscientes da gravidade desta hora. Mais do que nos precipitarmos numa mudança de assunto (porque coletivamente chegamos a uma exaustão psíquica provocada pelo mesmo martelar monotemático em todas as frentes), seria importante elaborá-lo em profundidade, e isso só acontece se tivermos a coragem de o fazer emergir. Mais do que nos escondermos uns dos outros, apostados numa gestão individualista da questão, torna-se indispensável que nos encontremos num discurso de comunidade. A pandemia não tem só vítimas diretas. A quantidade de vítimas secundárias não cessa de crescer numa crise que não é apenas sanitária, mas também económica e social. É cada vez mais manifesto que a pandemia nos empobreceu terrivelmente. A fome está de volta à Europa e insinua-se como um fantasma junto de pessoas e famílias que, há apenas seis meses, não se pensariam jamais em situação semelhante. Os dados dos bancos alimentares, das Cáritas e das muitas associações que estão no terreno a distribuir bens de primeira necessidade, são clamorosos. Ouvi recentemente aos responsáveis de uma delas o seguinte testemunho: “As nossas previsões iniciais é que este socorro alimentar seria necessário até finais de abril ou até maio no máximo, e que os números começariam pouco a pouco a baixar. Ora, estamos em pleno verão e os números continuam a aumentar, o que nos deixa muito preocupados com o que virá aí no próximo outono.” Cresceram não só os indicadores de pobreza relativa mas também os de pobreza absoluta. Jovens e idosos, desempregados e trabalhadores precários, nacionais e imigrantes deixaram de poder fazer face às suas despesas essenciais. Por isso, a pergunta mais urgente não é quanto tempo precisamos (um ano, dois anos, quatro anos?) para voltar à situação em que estávamos. A pergunta mais premente é: como é que esta dor nos pode ser útil? E a resposta é inequívoca: se redescobrirmos o sentido do próximo. Se este aluvião nos ensinar a nadar no campo da atenção solidária à vida frágil, tal como se declina em nós e nos outros. (D. Tolentino Mendonça)
Recomeçamos!

Ainda como quem não sabe por onde é o caminho, recomeçamos. O Verão atravessou-nos de luz como se uma janela se tivesse aberto do lado de dentro do coração. Vivemos o pico do Verão como quem viveu, também, a Primavera. Uns meses antes, todas as flores pareciam ter desaparecido da face da terra e tudo em redor parecia demasiado difícil, escuro, inacreditável. Depois, chegou agosto e as tempestades que trazíamos presas aos olhos começaram a secar. Era como se o Sol e o Céu nos tivessem dado umas pequeninas tréguas para recuperar forças, fôlego e fé. Não me esqueci (nem me esqueço) daqueles para quem a Primavera e o Verão ainda não chegaram. A doença. A morte. A perda. As saudades. As ausências. Para muitos, ainda será inverno de neve e de gelo ou outono de vento que nos faz cair as folhas das árvores que (nos) habitam debaixo da pele. Ainda assim, a pouco e pouco, recomeçamos e ousamos tirar os olhos do chão. Começamos de novo como quem foi forçado a nascer outra vez. Como quem foi impelido a aprender a viver num mundo tão diferente do que era. Ainda assim, permitimos que o Sol faça casa em nós e nos acenda a luz que precisarmos para ver e andar melhor. Começamos de novo como quem sabe que ainda há futuro. Que ainda há esperança. Que ainda há barcos para chegar. Que ainda haverá dias que nos farão tremer de alegria. Que nascerão folhas novas. Que ainda havemos de dar as mãos outra vez sem que nos sintamos envenenados. Que ainda havemos de nos abraçar até sentir os ossos. Que ainda havemos de brindar ao que passou. Começamos outra vez como quem sabe que as batalhas não acabaram. Que a espada ainda não está cravada no coração do dragão. E assim, enquanto não vencemos a guerra, que saibamos deixar (só) paz por onde passarmos. Recomeçamos? (© iMissio, 2020.)
10 perguntas para o pós-covid 19
A coragem destas horas não se joga apenas na primeira frente de combate à pandemia, mas também na resiliência e ousadia necessárias para pensar no que seremos no pós-covid-19. Para já, torna-se claro que não poderemos simplesmente voltar à etapa precedente, como se esta experiência traumática tivesse apenas sido uma interrupção, mas também não sabemos bem aquilo em que nos tornaremos, como indivíduos e comunidades. E se esta talvez seja a provação mais dura, é também a mais desafiante: o confronto com uma nova realidade que tem de começar, e ter de o fazer não numa zona de certezas como gostaríamos, mas ainda num instável território de transição, que se prolongará. Por isso, é importante que nos coloquemos perguntas, as mais díspares, as que têm emergido na corrente destes dias e outras ainda, e que as debatamos. 1 O processo gerado pelo vírus acelerará apenas as assimetrias e os egoísmos do velho mundo ou motivou-nos a compreender que estamos no mesmo barco e que só há futuro na cooperação e na implementação de outros modelos de existência coletiva? 2 Quando as portas das nossas casas se reabrirem, sairemos pesados e a medo, incapazes de vencer a distância que nos separa dos outros ou vamo-nos abraçar como irmãos reencontrados? Perderemos ou não a espontaneidade? Finalmente ultrapassaremos a paranoia do outro como rival, estranho e inimigo para pensá-lo como semelhante e aliado? 3 Quando reabrirmos as fronteiras passaremos, de facto, para uma nova etapa da globalização, mais conscientes dos riscos que ela comporta (pandemias, danos ambientais, mutações climáticas, precarização do trabalho e exclusão) e também mais capazes de construir uma nova ordem social e planetária assente na justiça? É importante que nos coloquemos perguntas, as mais díspares, as que têm emergido na corrente destes dias e outras ainda, e que as debatamos 4 Deixaremos de considerar a terra um objeto para ser ilimitadamente explorado, segundo os nossos interesses, ou vingará a ideia de que a terra e o cosmos sejam considerados, pelo direito internacional, como sistemas vivos, com o seu equilíbrio e as suas regras? 5 Compreenderemos finalmente que está tudo interligado, como insistiu o Papa Francisco na encíclica “Laudato Si”: o grito da terra e o grito dos pobres, a situação sub-humana a que estão condenadas multidões de seres humanos e a fragilidade ignorada do planeta? 6 Ainda fará sentido a previsão que decretava o fim da alimentação cozinhada em casa, pois todos nos tornaríamos clientes de uma app de food delivery? Ou reencontraremos outros ritmos que não os da ditadura da vida frenética (aprendendo a desacelerar) e outros sabores que nutram também a alma (reaprendendo a cultivar a nossa humanidade)? 7 A União Europeia terminará, como um monumental museu de boas intenções que se afunda, ou esta será precisamente a estação do seu relançamento? 8 Saberemos construir alternativas à massificação e reinventar uma escala mais humana para a convivência, para a arquitetura das nossas cidades e para a qualidade das nossas relações? 9 Saberemos cuidar dos médicos, enfermeiros e cuidadores que tiveram a experiência direta deste trauma? Rapidamente preferimos declará-los como heróis, e são, mas são também seres humanos vulneráveis como nós, que tiveram de esgotar os seus recursos para enfrentar a dor, o medo e a solidão dos pacientes, muitas vezes em estruturas inadequadas e tendo de operar com meios insuficientes. A compaixão e o cuidado deixam, não raro, uma fadiga interna, que tem de ser tratada. Como o faremos? 10 Triunfará uma visão mais integradora da vida, que compreenda a importância de valores como o dom, a gratuidade e a partilha, e nos capacite, por exemplo, para uma síntese mais equilibrada entre pessoa e comunidade, entre vida material e vida espiritual? (D. Tolentino Mendonça)