Deus a passear na brisa da manhã, no murmúrio do silêncio…

Pode-se acreditar em Deus e sentir o desencorajamento? Saber-se amado e, apesar disso, ter momentos de esgotamento interior? Sim. É disto que fala a Palavra, hoje. Na primeira leitura (1 Reis 19, 9a. 11-13a) lemos que Elias está desencorajado. Pensava que se matasse os sacerdotes do deus Baal, levados para Israel pela rainha Jezabel, poderia voltar a conduzir a multidão ao Deus de Israel, poderia levantar uma revolução. Não foi assim: não só as pessoas o abandonaram, como a rainha promete vingança, e o profeta tem de fugir para o deserto. Quer morrer, admite o seu erro: Deus não se impõe. E ele, arrogante e violento, não é melhor do que os seus pais. Jesus está desencorajado: prenderam e mataram João Batista, o ar torna-se pesado. Mas o pior é que, após a multiplicação dos pães, Jesus dá-se conta de que os seus discípulos não compreenderam praticamente nada da sua mensagem, das suas palavras. Diante de multidão esfomeada, sugeriram-lhe para a expulsar, para a mandar para casa. Os apóstolos estão desencorajados: não compreenderam o motivo da repentina dureza do Senhor, que os obrigou rudemente a subir à barca, para irem para a outra margem, a dos pagãos, cuidadosamente evitada pelos judeus. E está a levantar-se um vento forte, era só o que nos faltava (Mateus 14,22-33). Cansaço A vida é assim. Mistura, inevitavelmente, luzes e sombras, momentos exaltantes e momentos de fadiga, grandes alegrias e fortes dúvidas. E não pode ser de outra maneira. E é precisamente no momento da fadiga que descobrimos quem somos. E se, em vez de nos dobrarmos sobre nós próprios, ousássemos colocarmo-nos em discussão, esperar, mudar, orar, agir, algo acontece. Subamos de nível, mudemos de frequência, entremos dentro de nós mesmos, dentro da História, dentro dos acontecimentos. A rainha Jezabel, para Elias, a dúvida de ter escolhido as pessoas erradas, para Jesus, o mar tempestuoso, para Pedro e os outros. Aprender o silêncio Elias, assustado e consumido, desejoso de morrer no deserto, mas não fica a chorar-se a si mesmo. Reage. Põe-se a caminho. Deus não está na violência, compreendeu-o Elias sobre o monte da aliança. Deus não está na violência, nem nos grandes acontecimentos naturais o nos prodígios, mas no íntimo de cada um de nós. Na brisa da manhã, como mais precisamente, na voz do silêncio. Desaprendemos a escuta do silêncio. O lugar onde encontramos Deus. Por que não ousar? Por que não voltar a calar para escutar? Nós próprios. Os outros. Até Deus. Aprender a escolher Como podem não ter compreendido? Como podem, diante da primeira verdadeira prova, ter mostrado tanta indiferença e tanto cinismo? Para que serve amar, seguir, dedicar-se, instruir, viver com eles, se depois não mudam o coração? A noite de Jesus no monte, a orar, é atormentada e grave. Aqueles que escolheu com tanto cuidado e tanta paixão, aqueles que quis consigo, que ensinou, mostraram toda a sua pequenez. Reza, o Senhor. Talvez algo atordoado e desiludido. Não sabe o que fazer. Entretanto, levanta-se um vento forte no lago. Jesus escolhe. Escolhe não escolher outros. Não melhores, não mais coerentes, não excecionais. Escolhe aqueles doze. Escolhe-nos a nós, frágeis e incoerentes. Escolhe esta Igreja composta de lama e santidade. Escolhe-me. Tal como sou. Amando-me, conduz-me a outras pastagens. Pedro Os discípulos, nós, discípulos, estão assustados. Pela fúria do vento e das ondas. Por esta tempestade inesperada que, de repente, evidenciou a nossa imperícia como marinheiros. E eles, no coração da noite, são alcançados pelo Senhor, mas veem-no como um fantasma. Não o reconheceram no irmão faminto. Como podem reconhecê-lo aqui, agora? Só Mateus nos fala do episódio de Pedro. Daquele pedido, ingénuo para além de todo o limite, de chegar a Jesus caminhando sobre as águas. E Pedro lança-se. Confia. E afunda-se. Não, não é capaz, como nós não somos capazes, de caminhar verdadeiramente sobre aquilo que nos assusta, de caminhar, assobiando, à beira do abismo que bordeja a nossa vida. Desejamos, mas não somos tão corajosos, nem tão santos. Só o Mestre, só o Senhor pode dominar as altas ondas do mar, desde sempre, na Bíblia, poderoso e obscuro símbolo do mal e do medo. Só Ele. Nós não somos capazes, mas o Senhor desafia-nos, impele-nos a ousar. Sempre. Perante as dúvidas de fé, perante as tempestades da vida, o discípulo é chamado, como Elias, a escutar no seu coração o silencioso murmúrio de Deus, recuperando essa dimensão absoluta que é o silêncio, a oração, a escuta meditada do grande e quieto oceano da presença de Deus, para ver o rosto de Deus que se esconde no vento, que parece evanescente como um fantasma. Só a fé nos permite desafiar as ondas e os nossos medos. Não por arrogância, mas por infinito amor, por inoxidável paixão. Só assim podemos chegar à outra margem. Coragem. (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)  

Muda-te, para que não percas quem és!

Evoluir a cada dia garante que a nossa existência tem um sentido, um significado e um valor. Somos únicos, também pela forma como fazemos da nossa vida um caminho. Quem se julga perfeito e sem necessidade de mudar algo em si, perde a sua identidade e desperdiça vida. Tempos diferentes exigem respostas novas. Nenhuma solução é boa quando serve para vários problemas. A inteligência é a capacidade de encontrar a forma adequada de enfrentar cada desafio. Do mais vulgar ao mais extraordinário. Ser humano é ser capaz de ir fabricando chaves sem fim para todas as portas que encontramos no nosso caminho. Quem julga que a mesma chave serve para muitas portas, acaba por deixar de estar atento à beleza única de cada coisa, acaba por desistir de se admirar, de se deixar maravilhar. Parece que vive, mas não é uma vida plena. Nós precisamos do mundo e o mundo precisa de nós, é preciso que estejamos em diálogo constante, numa espécie de respiração onde se sucedem o dar e o receber. Mas sem monotonia, porque a vida é sempre nova, a que brota do fundo de nós e a de tudo o que nos rodeia. E é nestes encontros sempre únicos que vamos decidindo ser quem somos, escolhendo-nos através das nossas decisões. O que sentir, o que pensar, o que dizer, o que calar, o que fazer, como o fazer… tudo nos faz. Julgar que está tudo bem como está e que, por isso, já não há nada a fazer, é desistir de viver. Porque ainda que esteja tudo bem, há que cuidar de que assim se conserve por mais tempo. Que dure. A vida é uma eternidade viva. A vida quer viver… e vive. Mesmo quando nós não estamos atentos. Cabe-nos escolher entre bater as asas e voar ou… cair. (José Luís Nunes Martins)

O equilíbrio do casamento: entre continuidade e mudança.

Numa das cenas cruciais do filme “Vamos dançar?”, com Richard Gere e Susan Sarandon, decorre uma interessante troca de palavras entre a protagonista e o detetive privado que ela contratou para perceber se o marido a traía. A mulher pergunta ao detetive: «Qual é, na sua opinião, a razão por que as pessoas se casam?». O homem responde: «A paixão!». «Não», devolve ela. Diz ele: «É interessante, porque eu diria que é uma pessoa romântica. Então qual é?». E a mulher explica: «Porque precisamos de uma testemunha da nossa vida… Há milhões de pessoas no planeta. Que importância tem a vida de cada pessoa? Mas num casamento, a promessa é importar-se com tudo… quer das coisas boas, quer das terríveis, ou frívolas. Com tudo, sempre, todos os dias. Quem promete, diz: a tua vida não passará sem ser notada, porque eu estou lá para a notar; a tua vida não ficará sem testemunhas, porque eu serei a tua testemunha…». Então, no casamento não entra a paixão? Não entra o sentimento? Talvez, mais simplesmente, paixão e sentimento não são suficientes por si só para justificar uma relação complexa como o casamento. O casamento tem de ser redefinido por aquilo que é: uma relação pensada para durar no tempo, não uma relação a termo. É precisamente esta característica que dele faz, no plano afetivo e psicológico, um ligame altamente específico, muito diferente das outras relações, mesmo intensas e significativas O casamento é realmente uma história na qual cada um dos dois é única e verdadeira testemunha da vida do outro: conhece o outro como ninguém, inclusive nas dobras mais secretas do ser, conhece-o e vê-o inclusive nos momentos em que ele próprio não se vê. No casamento vemos o outro em ação a cada dia, em qualquer tipo de situação, na relação consigo próprio, além da relação com o mundo; podemos observá-lo “de costas”, conhecer lados dos quais ele próprio não tem consciência. Vemo-lo sofrer, vemo-lo estar alegre e triste, desanimado ou confiante; vemo-lo envelhecer. Admiramo-lo, detestamo-lo, amamo-lo, rejeitamo-lo. Mas se a relação é verdadeira, o tempo torna-o cada vez mais precioso, apesar de toda a dificuldade. Para poder ser tudo isto, o casamento tem de ser redefinido por aquilo que é: uma relação pensada para durar no tempo, não uma relação a termo. É precisamente esta característica que dele faz, no plano afetivo e psicológico, um ligame altamente específico, muito diferente das outras relações, mesmo intensas e significativas, que não têm como pressuposto partilhado o compromisso recíproco para a continuidade e duração. Mas o projeto de fazer durar a ligame de amor “para sempre” comporta como consequência igualmente específica a necessidade de desenvolver algumas competências que não podemos dar por adquiridas: trata-se de competências necessárias para fazer frente às inevitáveis situações de crise que, mais cedo ou mais tarde, se vão apresentar, sem nunca chegar a destruir a relação. O aparecimento de momentos de crise não pode ser considerado um facto excecional, e não indica necessariamente uma disfunção ou uma patologia do casal; cada crise tem, antes, a função de assinalar que chegou o momento de colocar em discussão o próprio ligame, para o reorganizar sobre equilíbrios novos Isto exige ao homem e à mulher que aceitem o casamento como um longo caminho, que os coloca diante do desafio de um crescimento continuado. Quer a nível individual quer enquanto casal, têm de passar, com efeito, por numerosas mudanças e momentos de renegociação da sua relação, porque a decisão inicial não é senão o primeiro ato de uma longa aventura, interessante e riquíssima. Ler o casamento como um processo dinâmico é muito importante: a relação de casal, efetivamente, não pode ser pensada como algo de estável e definido de uma vez por todas, porque a mutação da vida no tempo e a evolução pessoal de cada um tornam necessárias contínuas adaptações recíprocas. O desafio é o de encontrar um justo equilíbrio entre a continuidade e a mudança: continuidade que permite encontrar e manter a identidade única da relação, mudança que permite a cada um continuar a crescer, sempre no respeito pelo outro. Precisamente em consequência de tudo isto, o aparecimento de momentos de crise não pode ser considerado um facto excecional, e não indica necessariamente uma disfunção ou uma patologia do casal; cada crise tem, antes, a função de assinalar que chegou o momento de colocar em discussão o próprio ligame, para o reorganizar sobre equilíbrios novos, e introduzir as mudanças necessárias para que a relação se mantenha ao mesmo tempo estável e sempre vital. (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)

Capacidade negativa, por Tolentino Mendonça

É a uma carta do poeta John Keats que se deve a origem deste curioso conceito. A 22 de dezembro de 1817, ele escrevia aos irmãos, George e Thomas, anunciando haver compreendido qual era o segredo que garantia a realização plena de um homem e o tornava, como ele dizia, a “man of achievement”. Este segredo era a capacidade de caminhar na incerteza; de se deixar fluir através dos enigmas da vida, mesmo na dúvida; de se abandonar serenamente ao que lhe é dado viver, sem escapismos nem ressentimentos; e, sobretudo, a capacidade de não cair no erro de avaliar unicamente o caudal da existência pela viciada máquina do cálculo ou da razão. Os trabalhos da vida em nós estão para lá disso, insistia Keats. E um dos mestres para o qual apontava era Shakespeare, pois num grande poeta o sentido da beleza declara supérflua qualquer outra consideração. A esta resiliência para conduzir a embarcação que nos pertence através do oceano vasto e desconhecido, na ausência de mapas e de formas exaustivas de controle, John Keats designava como “capacidade negativa” (negative capability). “Negativa” porque contraposta à necessidade “positiva”, que reconhecemos em nós, de prever tudo, de perscrutar cada pequeno acontecimento pela lente da razão ou de lhes assegurar, de imediato, um desfecho, como se a vida fosse orientada por um guião. De facto, ao romantismo devemos a abertura da nossa sensibilidade a critérios não puramente empíricos, procurando uma síntese mais polifónica e integradora do humano, onde, por exemplo, a imaginação e o sentimento, a arte ou a religião não fossem enxotados para um estatuto epistemológico de menoridade, como se não tivessem nada a dizer sobre a existência. Novalis escreveu que “quanto mais poético mais verdadeiro”, uma sentença que conserva ainda muito para aprofundar. Sim, os livros de contabilidade dizem alguma coisa sobre o real, mas não dizem tudo e, porventura, não dizem o mais importante. Wilfred Bion irá recuperar este conceito de Keats e colocá-lo dentro do seu modelo psicanalítico, pretendendo descrever a capacidade (trata-se, na verdade, de um treino) para permanecer na confusão e na dúvida enquanto se escuta, sem precipitar-se na tentação de intervir cedo demais. Isso vale para a escuta analítica, mas também para as outras formas e contextos de escuta: o ouvinte tem certamente de aprender a compreender o que o outro lhe comunica; porém, também lhe será útil aprender a resistir à compreensão prematura, aceitando que muitas vezes se tem de relacionar com o que surge como incompreensível, ambíguo e contraditório, sabendo acolher e esperar. Para compreender é necessário esse abraço ao incompreensível de forma desarmada, que permitirá depois ao conhecimento que se constrói superar a dimensão plana, que tão frequentemente o aprisiona. Penso, por exemplo, nestes tempos que nos cabe viver e de como nos estamos a relacionar com a sua incerteza. A proposta de Keats inspira-nos a tomá-la humildemente como caminho, renunciando à ilusão de encontrar uma resposta rápida para as perguntas que nos estão a ser feitas e que se calhar não ouvimos ainda por inteiro. Há momentos, ensina o poeta, em que a modalidade mais próxima da sabedoria é essa difícil passividade, sem a qual não experimentaremos a recetividade mais verdadeira. Mas, por fim, “Negative Capability” é também o título que Marianne Faithfull deu ao seu último e comovente disco, um disco feito depois dos 70 anos (depois de um tumor e de inúmeros golpes), tentando agora conjugar o desejo de viver em plenitude com a maturação das próprias incertezas. Foi este disco que me mandou ler Keats.  

O mal seduz com as aparências

A felicidade depende muito das nossas escolhas interiores. Escolher bem é escolher o bem, mesmo quando isso implica deixar outras boas hipóteses de fora. Tão importante quanto escolher entre o bem e o mal é aprender a optar entre vários bens. Quem faz o seu caminho com verdade e o percorre com paz é feliz. Apesar de todos os sofrimentos, dores e tristezas que o envolvem. É feliz porque a felicidade não é uma alegria aparente, mas sim algo que se semeia, floresce e frutifica no mais fundo do nosso coração. A felicidade mora aí, onde os olhos de pouco nos servem. A verdade murmura, por isso é quase sempre uma excelente opção fechar os olhos para a escutar melhor! Há quem prefira viver a fingir. Com medo de ser frágil e pequeno, como se fosse o único a sê-lo! Somos todos bem mais fracos do que parecemos. E a nossa coragem para sermos melhores e mais fortes alimenta-se da humildade de aceitarmos as nossas cobardias e fraquezas. Em teoria, é simples: primeiro, distinguir a verdade das aparências e, depois, escolher a verdade. As infelicidades mais profundas são as de quem, tendo escolhido mal, não se arrepende e/ou não se perdoa. Como se não houvesse espaço nem tempo para se redimir. Ora, a existência humana é vivida neste tempo passageiro, mas também o é na eternidade, de onde este período faz parte. Assim, o plano da verdade é muitíssimo maior do que o das aparências. Nada do que importa se esgota aqui e agora. Para muitos, haver mais vida é quase uma má notícia, na medida em que os obriga a repensar as suas escolhas e critérios. A assumir e a corrigir erros do passado, que se arrastam e os perseguem, porque, afinal, nunca deixaram de ser importantes. A verdade da vida também nos obriga a refletir sobre o que devemos querer e fazer hoje mesmo, não em ordem ao imediato, mas ao longo prazo… Tal como hoje colhemos o que semeámos há muito, importa que sejamos capazes de escolher os caminhos que nos levam mais longe e mais alto. Uma certeza há: não são os mais fáceis. Os males habitam nas aparências, com promessas de paixão a curto prazo. A verdade é a casa do bem, de onde se pode sentir a brisa de um amor sem fim. (José Luís Nunes Martins)