De que foge quem tem pressa?

Será de si mesmo? Muitas vezes julgamos que podemos deixar os nossos problemas para trás, correndo para longe do lugar onde eles apareceram… mas, para nossa desilusão, eles alcançam o ponto de chegada ao mesmo tempo que nós. Ao caminhar, quando nos lembramos de algo que queremos aprofundar ou saborear, abrandamos os passos, a memória como que exige que nos concentremos na paisagem interior. A pressa faz com que não sejamos capazes de viver, porque não prestamos atenção a nada do que está à nossa volta. Por outro lado, a calma permite que admiremos um pouco de tudo o que nos rodeia a casa passo, vivendo mais. Os descobrimentos interiores não são algo que possamos começar a fazer, antes sim algo que, com o passar dos tempos, fomos abandonando. Já o fizemos, já o sabemos fazer, é o mundo que a cada dia nos seduz para longe de nós mesmos. Lembras-te dos dias e noites em que viajavas dentro de ti? Aventuras só tuas a que podes voltar… basta que abrandes o passo e te deixes tocar pelo que te rodeia. Algumas impressões levar-te-ão para dentro do teu coração, onde há belezas que não experimentas há muito tempo. Deixa-te ser como uma criança, que esquece rápido e não se angustia à espera do amanhã… O presente é o que vivemos e o que vemos que está diante de nós, o que devo fazer no próximo mês faz parte do meu presente, porque o consigo ver. O futuro será o que está para lá do que consigo antecipar. Alguns acreditam tanto que o futuro só pode ser melhor que tentam a todo o custo evadir-se do seu presente. Mas, por mais que fujamos a toda a pressa do presente, nunca chegaremos ao futuro mais depressa. Só quem não foge de si é que tem tempo para ser prudente. A pressa faz-nos perder tempo e vida! (José Luís Nunes Martins)
Parecer ser e sê-lo de facto.

Voltamos às celebrações eucarísticas e… Com as novas diretrizes de segurança os nossos templos parecem-nos mais vazios… Vem-me constantemente ao pensamento: É o futuro? Este momento pode ser uma oportunidade para refletir sobre nossa vocação evangélica de ser apenas um pequena porção de fermento ou de sal, uma semente de mostarda, que é a menor de todas as sementes, mas uma vez semeada, transforma-se numa árvore, muito maior que muitas outras plantas, tanto que os pássaros do céu vêm para nidificar entre seus galhos. No Evangelho, o que é pequeno, aparentemente insignificante e escondido, é extremamente frutífero e os frutos são até desproporcionais. A desproporção entre a pequenez e a fragilidade dos meios com os resultados obtidos é sempre surpreendente no Evangelho. Cinco pães de cevada e dois peixes, nas mãos de Jesus, não foram suficientes para alimentar cinco mil pessoas? «A semente que caiu em boa terra é aquele que ouve a palavra e a compreende. Esse produz fruto. Um dá cem, outro sessenta e outro trinta.» (Mt 13, 23) E o que são doze apóstolos diante do mundo inteiro? Mas não é fácil assumir esta verdade! A lógica humana procura instintiva e inconscientemente os grandes números, os grandes eventos, as grandes colheitas… Só com muita dificuldade, é que somos capazes de aceitar esta realidade… O cristianismo já não é uma religião de “massas”. Mas acredito que esta situação de minoria, é uma preciosa oportunidade de redescobrir a nossa vocação à autenticidade! Ela é a condição indispensável para que a semente dê fruto de acordo com o plano de Deus. Acredito que esta situação de minoria, que para o ser humano parece ser um fracasso, aos olhos de Deus pode ser uma graça, porque a adesão a Jesus Cristo deve ser consequência de um encontro pessoal com Ele; deve ser o resultado de uma livre escolha e livre adesão ao seu amor; deve ser testemunhado na experiência concreta da vida. Um cristianismo baseado num normativismo moral, litúrgico cai no risco de parecer ser e não de ser de facto fruto deste encontro pessoal que modifica e dá sentido às nossas vidas. E por ser-nos bom é que o queremos testemunhar, partilhar com o resto da humanidade sem medos e receios. Se olharmos para a história do povo cristão, facilmente veremos quais foram as épocas de maior riqueza testemunhal com a vida e com ações em favor da humanidade. As “grandes massas” sempre tiveram a tentação de cair no egoísmo das palavras vazias. Na perseguição e no “pequeno rebanho” é que houve o florescimento de grandes testemunhos e doutores de Deus e não da lei. Cada um de nós seja testemunha de Cristo e do seu amor. (© iMissio,)
A solidão não se mede aos palmos.

Por vezes, dentro de uma casa, a solidão mais invisível é a dos jovens. A solidão não se mede aos palmos — isto deve ser explicado a quem pensa que ela está confinada ao mundo dos adultos. É certo que, a partir de certa idade, e de uma sucessão de acontecimentos desamparados com os quais se colide, surge esse coágulo da alma, que luta para se tornar fixo. Não admira que os adultos farejem mais recorrentemente a solidão uns nos outros, lhe reconheçam os códigos, despistem os seus ziguezagues… Mas, por serem adultos, podem também fazer uso de mais recursos internos, de forças que possuam já ou que procurem, para fazer-lhe frente. A vulnerabilidade dos (mais) velhos é ainda outro discurso, porque aí a solidão, não raro, é um eufemismo para ocultar a palavra abandono. E, sobre isso, as nossas sociedades precisariam de refletir melhor. Mas a solidão dos (mais) novos é, porventura, aquela mais submersa, mais enigmática e confusa para os próprios sujeitos, aquela sobre a qual falamos menos. Possivelmente só daqui a muitos anos, por exemplo, vamos perceber como é que a geração das crianças e adolescentes de hoje viveu esta experiência da pandemia, que medos e incertezas se alojaram neles pela primeira vez ou que perguntas sem resposta se fizeram. Só mais adiante compreenderemos o que representou para eles o fecho abrupto das escolas, a distância dos amigos e coetâneos ou este regresso a uma intensidade da família nuclear, que antes talvez não haviam tido. Contou-me uma amiga que um dos filhos à mesa, tentando interpretar a situação extraordinária que a família está a viver, disse: “Acho que estamos aqui a construir memórias.” Todos olharam para ele, espantados com a grandeza inesperada da definição na boca de um fedelho, mas seguramente aquelas palavras corresponderam dentro dele a emoções, a um esforço concreto de aproximação a uma realidade complexa, a um apaziguamento que encontrou quando foi capaz de justificar a estranheza com uma missão que unia — e unirá depois ainda — toda a sua família, pois as memórias são, como se sabe, moedas para ser usadas no país do futuro. Muitas vezes, quem os vê armados de tecnologia, estirados pela casa, aparentemente fechados nos seus interesses, com a cabeça noutro lado, a responder com monossílabos a frases inteiras não imagina que esse é o modo possível de se protegerem de um mundo que sentem em derrapagem. Que quando vagueiam numa passividade onde só vemos desnorte e indolência eles estejam engolidos, com uma dolorosa reverberação que não captamos, pelo indizível espavento de se terem olhado ao espelho, e de se interrogarem como serão ao acordar no dia seguinte, e no mês seguinte. E que quando parecem implicativos e agressivos estão, a bem dizer, apenas assustados. Nós adultos esquecemo-nos depressa de como as vidas são fragilmente construídas sobre certezas cuja evidência depende da confiança, e que esta é um tão longo e feliz e sofrido caminho. Ganharíamos tanto se em vez da pressa dos juízos nos déssemos ao trabalho de sintonizar com a solidão dos outros, aprendendo assim a reconciliar-nos com a nossa. A solidão é uma das primeiríssimas experiências de humanidade que fizemos. Lembro aquilo que escreveu a pedopsiquiatra Françoise Dolto: “A solidão dos bebés existe. Eles têm necessidade de que lhes falem, de que lhes cantem, mesmo se ao longe. Ouvem uma voz, não estão completamente sozinhos. O ser humano precisa de companhia. O espaço de um ser humano, desde o nascimento, precisa de ser povoado pela presença psíquica de outro ser para o qual ele existe.” (D José Tolentino Mendonça)
As pantufas e o sofá arruínam-nos!

Muito mais do que o trabalho, a preguiça envelhece-nos, faz os dias passarem devagar ao mesmo tempo que os anos voam… As suas raízes estão no espírito, a moleza do corpo é apenas uma consequência de uma desistência interior. A preguiça faz-nos mal, porque pouco ou nada produzimos de bom, nem para nós nem para ninguém. Fazer pouco ou nada provoca-nos angústia, é apenas um vazio infértil disfarçado de descanso. Mas que cansa. Desgasta e corrói. A ociosidade é a terra onde melhor os vícios dão frutos! Não há virtude que nasça nos terrenos da inação. Tudo o que é mau precisa que abdiquemos de governar o nosso destino… e nos deixemos ir. Claro que o caminho de quem nada faz é cheio de embaraços, enquanto que aquele que se dedica e empenha no que procura encontra sempre forma de tornar os obstáculos em degraus. De que servem os nossos talentos e forças se nada fazemos com eles? É preciso que nos esforcemos por ser quem somos, senão seremos apenas pouco mais que nada. Algo com muito potencial, mas sem qualquer utilidade. É essencial que todos os dias nos ergamos e retomemos a nossa obra. Sem procurar descansar antes de nos cansarmos. A felicidade depende do que fazemos, não do que adiamos vezes sem fim. Se te faltam objetivos que te inspirem e motivem, procura-os no fundo de ti. Eles estão lá, talvez por baixo de muito pó ou até ainda embrulhados. Importa que sejamos capazes de matar a preguiça antes que ela nos sepulte vivos! (José Luís Nunes Martins)
Agora toca a nós.

Toca aos heróis ou toca a nós? Na travessia da quarentena nacional – e global – fez-nos boa companhia o pensamento de que “lá fora” tivesse despontado das dobras do país um exército de bem capaz de extrair competências, energias e recursos morais, sobre os quais, inconscientemente, sabíamos com que podíamos confiar sempre, e que, com a nação encurralada às cordas, se perfila como se estivesse sempre mobilizado. É um fenómeno que vimos repetir-se mais uma vez, mas numa escala nunca vista: quando é preciso, muitos entre nós sabem como fazer, e fazem-no de maneira sublime, exemplar. Veem onde é necessário intervir, e se encontram um obstáculo, removem-no ou contornam-no com determinação, criatividade, e não raro com resultados sem igual. A pandemia voltou a acender, em grau máximo, esta capacidade de gerar obras e soluções em favor dos outros. Como se a centelha fulgurasse precisamente quando se dá conta de que há um carenciado que pede, mais ainda do que capacidades técnicas, olhos para vê-lo e mãos generosas para o tirar da sua condição. A unidade de propósitos de todo um país por trás da vanguarda de profissionais e voluntários à altura do bom samaritano foi como que a consequência natural do alastrar imediato de pessoas para o bem: sentimo-nos representados por eles, muitos de nós fizeram parte deles, durante uma porção pequena ou extensa da viagem que percorremos desde o desencadear do contágio até hoje. Devemos salvaguardar a memória, como uma herança preciosa, destes testemunhos, protagonizados quer por quem se esgotou sem descanso ao longo de meses, quer aqueles que se distinguiram por um só gesto de fulgurante generosidade. Não nos deixemos distrair pelo recomeço de divisões, polémicas, ceticismos, egoísmos pessoais e corporativos E quem ficou à varanda sentiu que, com eles comprometidos em colocar travões aos efeitos do contágio, estava em campo também uma parte de si, a mais límpida, confiável e encorajadora. Vimo-nos ao espelho, vendo-nos muito melhores do que acreditávamos, não rancorosos ou amedrontados, como descrevem cruamente muitas radiografias da sociedade, mas capazes de ver a ferida do outro, a necessidade de todos, a vantagem da comunidade, e de preferir o seu cuidado do que o cultivo do nosso interesse, ao qual também o convergir de ideologias económicas, sociais e éticas de cunho individualista (moeda falta que quer expulsar a boa) procurou induzir-nos com sedutoras artes. Mesmo as pesadas privações a que todos fomos submetidos, e que produziram uma generalizada situação de sofrimento e angústia pelo futuro, foi aceite com um efeito inevitável de uma batalha cruenta combatida por tantos na frente por nossa conta. A amplificar o envolvimento coletivo juntou-se a evidência de que não só aos médicos e enfermeiros se devia o nosso reconhecimento, mas também à fileira de pessoas anónimas das quais aflorou, por vezes quase por acaso, a dedicação às necessidades dos outros, histórias e nomes que a atualidade noticiosa levou à boca de cena, e que na sua semelhança à nossa própria vida consolidou a ideia de que todos somos chamados à causa, cada qual envolvido nas vicissitudes de todos. E se foi natural definir como “heróis” aqueles que vislumbrámos na frente, fizemo-lo sabendo que, na realidade, eles somos nós, homens e mulheres de toda a condição e ofício que fazem aquilo que devem sem poupanças nem astúcias, permitindo-nos cortar pela raiz a desconfiança que, infelizmente, se tornou perniciosa companheira de viagem. Devemos salvaguardar a memória, como uma herança preciosa, destes testemunhos, protagonizados quer por quem se esgotou sem descanso ao longo de meses, quer aqueles que se distinguiram por um só gesto de fulgurante generosidade. Não nos deixemos distrair pelo recomeço de divisões, polémicas, ceticismos, egoísmos pessoais e corporativos: sabemos que somos muito melhores do que a forma como nos vemos quando, a ditar o humor nacional, só há aparência de polémicas, egoísmos, cobardia. Mas a condição para enfrentar com passo seguro a nova travessia em terra incógnita que nos espera é que aquilo de heroico redescobrimos por dentro como reflexo do testemunho partilhado por tantos se torne parte de um novo estilo de quotidianidade capaz de esperança, reconciliada com os outros, que a cada manhã se redescobre rica da melhor parte daquilo que nos constitui como pessoas, cidadãos, e em muitos casos, crentes. Os dias dos heróis acabaram: agora toca a nós. (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)