O arcebispo D. José Tolentino Mendonça, arquivista e bibliotecário da Santa Sé, é um dos autores que marcará presença no livro “Vicente. Símbolo de Lisboa. Mito contemporâneo”, que o município vai lançar a 16 de março, pelas 16h00.
A obra ilustrada sobre o santo diácono e mártir, padroeiro principal da diocese do Algarve e do patriarcado de Lisboa, que a Igreja católica evoca liturgicamente hoje, 22 de janeiro, será também composto por textos de José Eduardo Franco, José Sarmento de Matos, Pedro Picoito, Peter Hanenberg e António de Castro Caeiro.
Antes, a partir de 2 de fevereiro, a autarquia inaugura uma exposição dedicada ao padroeiro, na qual se exploram «várias dimensões e linhas de investigação» sobre S. Vicente, «através de diversos objetos e linguagens artísticas, obras de escultura, performance, instalação, pintura, vídeo, desenho, ilustração, texto, entre outros».
Patente até 28 de abril no Museu de Lisboa – Palácio Pimenta, a mostra com curadoria de Mário Caeiro é composta por «referências dos séculos XV, XVI e XVII» que «dialogam com obras e intervenções artísticas contemporâneas, apresentadas ao longo dos últimos oito anos no projeto homónimo da Travessa da Ermida», ou criadas para a exposição.
A 7 de fevereiro, às 18h00, decorre a conversa “Relíquias. Do corpo (do fragmento) e da totalidade”, com José Eduardo Franco, Philip Cabau, Paulo Borges e Joana Balsa Pinho.
“Conversa narrativa(s). Do lendário e sua tradição entre culturas” é a proposta de conversa para 14 de março, à mesma hora, com Paulo Almeida Fernandes, Nelson Guerreiro, Pedro Picoito e Luísa Paolinelli.
S. Vicente, diácono e mártir
S. Vicente é o mais célebre dos mártires hispânicos, o único que se encontra incorporado na liturgia da igreja universal.
Desde muito cedo foi objeto de um culto amplamente difundido. Já o grande poeta Paulino de Nola, que viveu na segunda metade do século IV e na primeira do século V, lhe atribuía o mesmo estatuto que o de S. Ambrósio em Itália, ou o de S. Martinho de Tours na Gália. O seu contemporâneo Prudêncio dedica-lhe um longo poema, além de largo excerto noutro hino a propósito da cidade natal do mártir, Saragoça. Nos primeiros anos do século V, por volta de 410-412, Agostinho assim dizia em Cartago num dos sermões compostos para a missa da festa do mártir (“Sermo” 276, PL 38, 1257):
«Qual é hoje a região, qual a província, até onde quer que se estenda tanto o império romano como o nome de Cristo, que não rejubile por celebrar o dia consagrado a Vicente?»
Segundo a tradição hagiográfica, os acontecimentos ter-se-iam passado na sequência de uma série de decretos dos imperadores Diocleciano e Maximiano, emitidos nos anos 303 e 304, que intentavam reprimir o culto cristão por todo o império. Vicente seria diácono em Saragoça, quando é preso por um governador de quem não temos qualquer outra referência e cuja existência é muito problemática, de nome Daciano. Recusando revelar o sítio dos livros de culto e abjurar, como ordenava o decreto imperial, é levado para Valência (episódio singular, pois Saragoça e Valência pertenciam a províncias distintas, uma à Tarraconense, a outra à Cartaginense, cada uma com o seu próprio governador). Das sequelas do interrogatório sob tortura a que foi submetido, faleceu a 22 de janeiro do ano 304.
Após a morte, a hagiografia deixou-nos acontecimentos miraculosos, como o episódio do corvo e o do regresso do corpo a terra, após ter sido lançado ao mar. Poucos anos depois, a partir de 313, no tempo do imperador Constantino, constrói-se um sepulcro martirial em Valência, que mais tarde daria lugar uma basílica extramuros, onde o corpo era venerado pelos devotos.
O culto difundiu-se rapidamente. Corroborando os textos hagiográficos, Valência assumiu-se desde logo como sua sede privilegiada. Aqui ficava a igreja que acolhia o corpo do mártir, citada por Prudêncio e pela Paixão traduzida mais adiante. Além disso, uma inscrição transmitida por um manuscrito do século IX indica que o bispo Justiniano (527-548), membro de uma família de ilustres literatos e eclesiásticos, além de muito devoto do santo, terá deixado os seus bens em testamento a um mosteiro dedicado a S. Vicente, que a tradição identifica hoje com San Vicente de la Roqueta.
Segundo a tradição hagiográfica, os acontecimentos ter-se-iam passado na sequência de uma série de decretos dos imperadores Diocleciano e Maximiano, emitidos nos anos 303 e 304, que intentavam reprimir o culto cristão por todo o império. Vicente seria diácono em Saragoça, quando é preso por um governador de quem não temos qualquer outra referência e cuja existência é muito problemática, de nome Daciano. Recusando revelar o sítio dos livros de culto e abjurar, como ordenava o decreto imperial, é levado para Valência (episódio singular, pois Saragoça e Valência pertenciam a províncias distintas, uma à Tarraconense, a outra à Cartaginense, cada uma com o seu próprio governador). Das sequelas do interrogatório sob tortura a que foi submetido, faleceu a 22 de janeiro do ano 304.
Após a morte, a hagiografia deixou-nos acontecimentos miraculosos, como o episódio do corvo e o do regresso do corpo a terra, após ter sido lançado ao mar. Poucos anos depois, a partir de 313, no tempo do imperador Constantino, constrói-se um sepulcro martirial em Valência, que mais tarde daria lugar uma basílica extramuros, onde o corpo era venerado pelos devotos.
O culto difundiu-se rapidamente. Corroborando os textos hagiográficos, Valência assumiu-se desde logo como sua sede privilegiada. Aqui ficava a igreja que acolhia o corpo do mártir, citada por Prudêncio e pela Paixão traduzida mais adiante. Além disso, uma inscrição transmitida por um manuscrito do século IX indica que o bispo Justiniano (527-548), membro de uma família de ilustres literatos e eclesiásticos, além de muito devoto do santo, terá deixado os seus bens em testamento a um mosteiro dedicado a S. Vicente, que a tradição identifica hoje com San Vicente de la Roqueta.
O outro local importante era Saragoça, onde Vicente fora diácono e onde o seu martírio começara. Já em finais do século IV e inícios do século V, o poeta Prudêncio refere o culto que aí se desenvolvia, aludindo a umas relíquias (fala de algum objeto com o sangue do mártir). Em 541, durante o cerco de Childeberto, rei da Nêustria, Saragoça teria sido salva pela intervenção miraculosa da túnica do mártir, em episódio mais adiante referido. Na primeira metade do século VII, o poeta Eugénio de Toledo dedica um epigrama a uma igreja do santo, aludindo ao sangue e à túnica, túnica que reaparece numa oração da missa composta na mesma altura. Eugénio foi, de resto, arcediago desta igreja.
Além de Valência e Saragoça, cidades indissociáveis da figura de S. Vicente, o culto cedo se estendeu a outras cidades da Hispânia. Em Sevilha, já antes de 428, quando os Vândalos invadem a cidade, a catedral onde Isidoro se recolheu na véspera de morrer estaria dedicada a S. Vicente. A catedral de Córdova também estaria sob a invocação do mártir em período anterior às invasões muçulmanas. (…)
E desde o século VIII até ao século X, a proliferação de igrejas dedicadas a S. Vicente é notável por toda a Hispânia: cite-se apenas Oviedo, onde em 761 são depositadas umas relíquias trazidas de Valência.
Em África, sabemos que, por inícios do século V, o dia de S. Vicente era celebrado com grande solenidade. O ilustre Agostinho redigiu, entre 410 e 412, quatro sermões para este dia, um outro com larga referência, e, se acaso for do bispo de Hipona, um sexto entre 410 e 419 (“Serm. 4 De Iacob et Iesau”). Em quatro deles indica expressamente que tinham acabado de escutar a leitura da Paixão do mártir. No século VI, o seu culto está atestado por um calendário litúrgico de Cartago, escrito entre 506 e 535, por alguns sermões anónimos e pela epigrafia.
Na Gália e Aquitânia, o culto remonta, pelo menos, a meados do século V. (…) O século IX assiste a uma notável expansão do culto de S. Vicente (…). Mas, de longe, a igreja mais famosa na Gália é a de Paris. (…)
Por estas brevíssimas notas, é evidente a espantosa difusão que o culto a S. Vicente alcançou nos séculos anteriores à nossa nacionalidade. Ora, sucede que os inícios do reino de Portugal, e, em particular, a cidade de Lisboa, estão indissociavelmente ligados ao diácono de Saragoça.
Já antes da conquista de Lisboa por D. Afonso Henriques, temos notícia da existência de basílicas dedicadas ao mártir no que será mais tarde território português. Um documento do ano 830 (seguido de dois outros de cerca de 90S e do ano 911) refere uma igreja dedicada a S. Vicente em Infias, Braga, que poderá remontar ao século VII. Em 972, documentação referente ao mosteiro do Lorvão menciona uma igreja nas imediações de Coimbra; documentos dos anos 970 e 973 aludem a uma Porta de S. Vicente, nos limites das terras de um mosteiro designado “de Bacalusti”, nas margens do rio Douro; em 978 e 1002 refere-se uma igreja de S. Vicente “de Pararia”.
Antes de 1094, quando passa para a posse do bispo de Coimbra, o mosteiro da Vacariça, na região da Mealhada, associava a invocação a S. Vicente à de S. Salvador, e já antes de meados do século XI, o mosteiro de Guimarães tinha o mártir de Valência como um dos seus titulares secundários. O censual de Braga, escrito entre 108S e 1091, do qual se conserva apenas a parte respeitante à região entre o Lima e o Ave, refere oito igrejas dedicadas a S. Vicente, e mais duas em que o mártir se associa a outro patrono. Enfim, a documentação medieval identifica noutras regiões outras igrejas sob a invocação do mártir que podem remontar a período anterior a meados do século XII.
Em Lisboa, a mais antiga atestação remonta ao tempo do nosso primeiro rei. Ao sitiar Lisboa em 1147, D. Afonso Henriques fizera o voto de, se a cidade lhe caísse nas mãos e os infiéis fossem aniquilados, mandar construir dois mosteiros junto a dois cemitérios que se revelavam necessários para sepultar os cruzados que sucumbiam junto às muralhas do castelo. Uma das igrejas foi erigida junto ao cemitério dos teutónicos em 1148 sob a invocação de S. Vicente. Não sabemos se já ali haveria um culto mais antigo, se era uma criação expressa. Tendo o rei dado a escolher ao bispo D. Gilberto e aos cónegos uma das duas igrejas, estes optaram por Santa Maria dos Mártires (a atual Sé de Lisboa), junto ao cemitério dos ingleses. A igreja de S. Vicente ficou então na posse do rei, e foi dirigida por presbíteros ingleses, até D. Afonso Henriques nomear o primeiro prior, Gualter, de origem flamenga, a que se seguiram cónegos regrantes da confiança do rei. Isto é relatado na “Notícia da fundação do mosteiro de S. Vicente”, redigida em 1188.
Mas o que liga intrinsecamente Lisboa a S. Vicente é a chegada das suas relíquias ocorrida em 1173. Conta a “Crónica de Al-Razi”, composta no século X, que conhecemos por intermédio de uma tradução portuguesa do século XIV feita a mando de D. Dinis, que, durante a perseguição de Abderramán I (756-788), o corpo de S. Vicente fora levado de Valência, onde estaria na antiga igreja sob sua invocação, para o Promontório Sacro, hoje Cabo de S. Vicente, em Sagres. O caráter sagrado do local já na Antiguidade era assinalado, desde, pelo menos, o geógrafo Estrabão, que viveu nos séculos I a. C. e I d. c., Plínio (século I d. C.) e outros autores do mundo clássico. A “História PseudoIsidoriana” e o geógrafo Al-Idrisi em obra de meados do século XII afirmavam que ali existiria uma “igreja dos corvos”. Porventura, desde época recuada, ali poderia ter havido uma capela. Esta tradição sustentava a pretensão de Lisboa, pretensão essa apoiada nos séculos XVI e XVIII por Ambrosio de Morales e Henrique Flórez: seria aqui que estavam efetivamente as relíquias do santo.
Diga-se que Lisboa não era a única cidade a presumir ter o corpo do mártir. Aimoin de Saint-Gerrnain-des-Prés conta que o corpo do mártir fora trazido, em 863, de Valência para Castres, uma cidade no sul de França. No século XI, um braço num relicário fora levado de Valência para Bari. Também San Vincenzo ai Volturno (desde inícios do século VIII), e depois Cortona e Metz, Benevento e Monembasia (no sul da Grécia), reclamavam deter o corpo do santo. Por outro lado, o século XII é um período de intenso “achamento” de corpos santos e relíquias, geralmente com o objetivo de promover a peregrinação e ampliar o prestígio e o estatuto das respetivas igrejas. Relembre-se apenas, no início do século, Braga e Compostela, que se dedicaram à disputa da posse de corpos santos.
Neste contexto, em 1173, de acordo com um texto de finais do século XII ou do século XIII da autoria de Estêvão, chantre da catedral de Lisboa, e que segundo Aires Nascimento, corresponde ao momento da instauração do culto na diocese de Lisboa, um anónimo alerta para a existência do corpo do mártir na ponta do Algarve, em mãos dos infiéis. No dia 15 de setembro, as relíquias chegam a Lisboa, ficando na igreja de Santa Justa, antes de se recolherem no dia seguinte na Sé, com a oposição da igreja real de S. Vicente. O mártir de Valência tornou-se assim o padroeiro de Lisboa, sendo o dia da chegada do seu corpo celebrado na liturgia e em animadas festas populares (15 de setembro). E este dia, que no século XIX mudou para 16 de setembro, foi comemorado até recentemente.
Texto “S. Vicente, diácono e mártir”: Paulo Farmhouse Alberto, in “Santos e Milagres na Idade Média em Portugal”, vol. I, ed. Centro de Estudos Clássicos – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Imagem: André Graça Gomes | D.R.
Publicado em 22.01.2019